Quem tem boca vai a Roma (e bebe melhor na França)
Como apanhei das cartas de vinho francesas e o que aprendi para não sofrer a cada pedido nos cafés e bistrôs
Peço perdão pelo jetlag dessa edição, em parte escrita no avião, após 13 dias de viagem, num combo de trabalho e férias.
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Todos querem ganhar a vida com algo que lhes dê prazer. “Trabalhe com o que ama e não trabalhe um dia sequer”, é o que dizem por aí. O que pouca gente comenta é que o trabalho muitas vezes esvazia o prazer. Quando há obrigação e nos sentimos pressionados a cumprir tarefas e prazos, até esquecemos da graça do ofício. E aí tem quem diga: “se fosse bom não chamava trabalho, chamava cerveja.” Mas e quando você trabalha com cerveja — ou vinho?
Fui convidada a visitar a feira da revista Grandes Escolhas, em Lisboa, Portugal, e a ideia era seguir para a França, visitar uns amigos em Lyon e fechar a viagem em Paris, sem nenhuma movimentação de trabalho, visita a vinícola, degustação, nada. O objetivo era descansar e recuperar o prazer de comer e beber.
Comecei mal, na linha do “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”, porque defendo com unhas e dentes o planejamento com antecedência. Dessa vez não consegui programar nada, nem o que fazer, nem o que beber ou comer, nem onde ir. Peguei dicas incríveis com amigas sabidas e joguei num grupo de WhatsApp que jamais foi lido. Deixei a vida me levar e abracei o que a vida me deu, com alguns tombos feios e sessões de martírio. O bom é que tudo é relativo e um tombo horroroso pode virar uma linda memória.
Explico: no primeiro jantar em Lyon, fui ao Bel Ami, restaurante tchoptchura que faz um híbrido de cozinha francesa e italiana, bem contemporâneo, na onda dos mil pratinhos pra compartilhar e menu que muda de acordo com a disponibilidade dos ingredientes. Acompanhada de amigos queridos e no calor da empolgação, pedi um vinho bem acima do que o meu orçamento de férias permitia. Era um Arbois, AOC do Jura, Domaine de la Borde Gelées de Novembre, do produtor Julien Mareschal. Típica queimada de largada. Obviamente, o vinho era maravilhoso, completamente elétrico, vivo, misturava nota de fruta branca fresca com salinidade, era cremoso, crocante, gostoso. Não era um vinho pra tomar de balde, como se diz por aí, era um vinho pra tomar banho mesmo. Ainda assim, recuperada da euforia inicial, já em casa, antes de dormir, o preço começou a doer. Caiu a ficha de que esse tipo de comportamento levado pela emoção me traria dias de escassez ao fim da viagem. Ao fim da viagem, no entanto, hoje, do avião, o que percebo? Esse vinho que me causou ressaca financeira está no pódio da temporada. Valeu a pena? Valeu. E com um adendo feliz: não foi pago no cartão. Já foi, passou, au revoir, bonne journée.
Por outro lado, no dia seguinte a essa grande experiência, parei numa brasserie e pedi a garrafinha de 350 ml do rosé da casa. Baratinho que só ele, totalmente inofensivo no bolso, era um licor de chiclete. Fiquei mais triste com ele que com o gasto da noite anterior. Sou da política que é melhor beber menos e melhor, mas as férias são um tour de force do hedonismo e, melhor que um baratex desse pode ser um choppinho, que ainda limpa o paladar por ter carbonatação (o que você acha que bebemos ao fim de uma feira de vinhos?).
As férias francesas também me presentearam com uma angústia nova. Como escolher vinho no país do vinho? Como navegar em meio a um mar de opções, equilibrando a vontade de conhecer coisas novas, beber os clássicos, reencontrar favoritos? No geral, me sentia um tanto mirim a cada vez que recebia uma carta. Por mais que as regiões e uvas não sejam alienígenas pra mim, muitos dos produtores ali presentes são, um monte de Domaine XYZ e Monsieur Quelque-chose et fils. No último dia, ao visitar uma cave recomendada, lembrei da frase da Daniela Bravin, da Sede 261: o bom garçom faz a praça. Com a ajuda de uma caviste genial e abrindo o coração (“é meu último dia, preciso gastar até x porque o dinheiro já se foi”) trouxe coisas melhores do que as que tomei e por um preço bem mais razoável.
Quem tem boca vai a Roma — e bebe melhor em Paris ou Lyon. O tal vinho caro do primeiro dia foi uma recomendação do sommelier. Recomendo sempre ouvi-los, mas também não esconder o seu orçamento, por menor que seja.
E, claro, é preciso fazer escolhas: vai ter dia que você conhece uma coisa nova, noutro você prova um clássico e nos outros três ou quatro seguintes, se o bolso pedir arrego, você segura a onda, toma uma água com gás, uma cervejinha e ótimo. Melhor que pedir a taça de branco mais barata, que vai ser mais pesada que a água da carrafe.
Tempo e temperatura
É inacreditável a temperatura dos tintos servidos em taça. Eles são como o meu sangue por você, leitor amado: fervem. Fiquei pensando no que o grande enólogo italiano Alberto Antonini me falou: a temperatura não é um lugar, não é ambiente, é um número. Não podemos subestimar essa sabedoria. Se tá fazendo 15 graus lá fora mas o aquecedor tá ligado e já chega a uns 25 aqui dentro, faz sentido em falar de temperatura ambiente pro seu tinto? Você quer uma taça a 25 graus?
Desastre aéreo
Quando a comida do avião ficou tão ruim? Não tou falando da comida sem graça de sempre, mas da pior experiência gustativa possível. Vamos dar nome aos vôos: o que é que estão servindo na TAP? Acho que chamar de lavagem é uma ofensa às lavagens.
Gosto muito de você, Lyonzinho
Essa é a cidade mais gastronômica da França, onde Paul Bocuse fez sua vida e obra, além de ter treinado um batalhão de grandes cozinheiros franceses que viraram embaixadores do franco soft power — Claude Troisgros no Rio, Laurent Suadeau em São Paulo, Daniel Boulud em Nova York. Na minha primeira passagem por lá, em 2018, fiquei hospedada no hotel escola Institut Paul Bocuse. Se o orçamento permitir, vale demais.
Outra referência importante da história gastronômica da cidade é a Mère Brazier. Seu restaurante ainda está de pé com um lauto menu, mas é preciso desembolsar 98 euros para provar. Não foi meu caso infelizmente, mas depois vi que há um pequeno comptoir onde é possível provar algo da sua cozinha pagando beeeem menos no Les Halles de Lyon. A quem é amigo das caçarolas, recomendo este livro clássico que reúne suas receitas.
Por fim, para se apaixonar de vez pela cidade, há o incrível “Cinco Anos em Lyon”, do jornalista norte-americano Bill Buford, que largou a vida de editor de grandes revistas (New Yorker, Granta) pra ser estagiário de cozinha e cursar o Instituto Paul Bocuse. Deixo aqui o link de uma entrevista que fiz com ele para a Gama quando o livro foi lançado no Brasil e, também, uma frase muito boa que ele me falou na ocasião:
“Quando você escreve sobre comida, escreve sobre história, família, cidades, civilização e, necessariamente, política”
As leis do croissant
Encontrei o melhor croissant da vida em Lyon. Ele era crocante por fora, macio por dentro, amenteigado, firme no ponto, saboroso, perfeito. Numa padaria simples, a Boulangerie Pauline et Steve, uma portinha, que não tinha nem café decente. Mas o croissant… Dias depois, fui numa mais tchans de Paris e o croissant era lamentável. Minutos depois, o algoritmo clarividente me mandou esse vídeo. Resumidamente, ele explica que o croissant feito com manteiga deve ser reto e o curvo é o feito com margarina e outras gorduras. Obcecada pela ideia, achei esse ótimo texto do Adam Gopnik para a New Yorker.
O céu (e o terroir) de Lisboa
Vinhos frescos, salinos e mais baratos são alguns dos muitos atrativos de Lisboa, que tem um enoturismo fácil. É o assunto da coluna da Folha da semana passada, que colo aqui para você. O ponto mais alto é Colares, praia a 40 minutos do centro, onde conhecia a Haja Cortezia, que é minúcsula e faz tintos leves e deliciosos, além de brancos com mais complexidade.
Fui atacada pela IA
Qual meu choque ao receber de um amigo o áudio abaixo? É um podcast feito com base na última edição dessa news em inteligência artificial. Aonde vamos parar?
Semana do Jerez
Encerro esta edição brindando com Jerez, afinal estamos entrando na International Sherry Week, quando são celebrados esses vinhos. A quem não sabe, eles têm algumas novas regras, que incluem novas castas, fino e mazanilla de guarda e outras cositas más, que você lê aqui. Em São Paulo, há uma programação farta até 10/11, com o ponto alto sendo a feira, onde é possível provar diferentes estilos e produtores por um ingresso de R$ 50. Outros destaques:
Jerez de Bar em Bar - Gabrielle Frizon, a Louca do Jerez, com vinhos da bodega Sanchez Romate, começando às 18h, no Pirineus Bar, no 5/11. Inscrições aqui.
Jerez & Tapas - No 6/11, às 19:30h, cinco estilos de Jerez harmonizados com tapas no Elevado Bar. A degustação é guiada por Paulo Brammer. Ingressos aqui.
Masterclass com Jorge Lucki no Huevos de Oro no dia 7/11. São só 20 vagas, melhor correr. Ingressos no Sympla.
Se você quer ler um pouquinho mais sobre estes vinhos, recomendo ler a coluna que saiu hoje na Folha e essa edição aqui do ano passado:
Só mais um golinho
Depois de uma semana na França, difícil até fazer piada com um assunto que não seja pão.
Amei o texto! Sempre uma leitura que conecta. Sabe que senti algo parecido sobre a escolha dos vinhos em Paris durante as férias, agora em Set/Outubro... cara, eu acabei chutando o balde e fui numa loja de vinhos "naturebas" em Ternes pra comprar umas coisas pra trazer. Repetia toda hora que não queria beber Borgonha por beber e não trouxe nada convencional pra casa. Além, claro, de ter bebido duas "verre de vin" beeeem ruins nessa vibe do que cabe no bolso. Aiai... Beijos
Gostei bem desse livro do Buford, que é um dos autores da minha vida.