Festa do saquê, festival de umami
Um convite que não se recusa me levou a quatro diferentes versões da bebida, que agora é tratada como o vinho
Era um convite que não se recusa: um jantar harmonizado de pratos tailandeses (do Ping Yang, em São Paulo) com diferentes saquês (importados pela Mega Sake). O objetivo era provar que a bebida harmoniza bem com comidas picantes, “um dos gargalos do vinho”, dizia a mensagem.
O menu era até menos picante do que o esperado, mas não pouco condimentado, com uma exuberância de ervas, com muito umami e… muito ovo. Achei aquilo curiosíssimo, afinal, ele sim é um sabido inimigo do vinho, dificílimo de harmonizar. A culpa é de uma substância chamada albumina, que envolve a língua de um jeito perigoso, como se a encapsulasse ou como se fosse um colete à prova de vinhos. Na minha experiência, a perlage dos espumantes e a supersalinidade dos Jerezes fino e mazanilla podem vencê-la.
Após teorias da conspiração sobre um suposto lobby de granjas, ficou claro para mim que o saquê não tem muito problema com o ingrediente. Mas, ao mesmo tempo, o exercício gerou certa confusão mental: passei a noite procurando acidez na minha taça, sem encontrá-la. Talvez porque a bebida foi tratada como os vinhos são, servida à temperatura correta na taça universal e para acompanhar comida, com um discurso que incluía uma terminologia também conhecida — “resgate de variedade ancestral”, “influência litorânea”, “feito sem aditivos, de forma natural”.
Algo me diz que vamos ver cada vez mais bons saquês por aí, o que é uma boa notícia. Apesar da falta da percepção da acidez, eles trazem outros elementos à mesa, como um forte caráter umami, que pode harmonizar com muita comida rica nesse mesmo sabor por semelhança. Em vez de provar saquê com comida japonesa ou tailandesa, então, adoraria provar com cogumelos mais ocidentais, com parmesão, com tomate, e ver como fica essa dança umamesca (ai!).
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Na Gama, já escrevi um texto que funciona como um pequeno manual de iniciação ao saquê. O link está aqui, mas colo a dica que sugere que aumentemos nosso vocabulário:
O mundo do saquê parece infinito e muito misterioso para quem está entrando, com uma imensa variedade de estilos, categorias de refinamento e classificações do doce para o seco. Para começar, foque nos quatro tipos mais conhecidos pelo mercado: o junmai, feito sem adição de álcool destilado, que deixa a bebida com mais corpo e cremosidade (um teste é girar a taça e ver a formação de lágrimas); o honjouzou, que é refrescante, tem aroma discreto e 10% de adição de álcool destilado; o nigorizake, bebida não filtrada de textura leitosa, sabor doce e intenso; e o namazake, o mais fresco de todos, que não é pasteurizado e portanto precisa ser mantido em constante refrigeração.
Na noite harmonizada, foram quatro saquês, começamos pelo Morishima Junmai Daiginjo, com notas de maçã, pêra e especiarias. Delicado e untuoso, foi bem com um peixe cru picante e uma salada de ervas com paçoca de porco e ovos fritos (começou a farra do ovo!).
O Gassan Houjun Junmai foi o segundo, com duas características interessantes: é feito numa província remota e pouco habitada, considerada “Japão profundo”, com uma das águas mais leves do mundo, o que o torna pouco encorpado, apesar dos seus 15,5% de álcool. E é justamente esse um dos grandes perigos do saquê: com essa gradação e sem muitas arestas, ele vai descendo redondo até você não conseguir mais levantar.
Seguimos com o Niida Shizenshu Junmai Ginjo, tão umami que mudou totalmente a brincadeira. Girei a taça, fechei os olhos, aproximei o nariz e me imaginei presa em uma redoma cheia de cogumelos secos. Na boca, totalmente cremoso e redondo, e ainda mais alcoólico, com 16%. É feito em Koriyama, Fukushima, com arroz orgânico.
Por fim, provamos o Fukushogun Daiginjo, premiado em concursos de saquê e de vinho e único a ser servido morno. Seco e leve, é feito com água das montanhas Rokko por produtores que tem 300 anos de hsitória.
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Se sua curiosidade foi aguçada por essas pequenas notas, entre 4 e 5/10 São Paulo sedia a segunda edição da Sake Fair com oito produtores japoneses no Nikkey Palace Hotel, na Liberdade. Serão mais de 50 rótulos produzidos em diferentes províncias japonesas, alguns ainda sem importadora por aqui. O ingresso custa R$ 40 e inclui uma taça para degustações gratuitas e acesso a palestras educativas. Aqui para sexta, e aqui para o sábado.
Faça o que eu digo, não faça o que eu faço
Outro dia fui a um churrasco na casa de uns amigos e levei um vinho muito especial. Era um tinto caríssimo, tânico, encorpado, que eu guardava há pelo menos seis anos (os amigos mereciam, e muito!). Foi uma alegria compartilhar a garrafa com eles. Mas veja o cenário: foi a sexta garrafa (a turma era de 8 amigos), estava um calor danado, estávamos na área externa, com taças de plástico. Não sei quantos textos já escrevi que os grandes vinhos são melhor compartilhados com poucos, assim podemos ficar mais tempo com ele na taça, provar com calma, com atenção. Foi absolutamente o oposto. Ninguém entendeu direito, quando alguém checou o preço todo mundo ficou com aquela cara de ?
Essa história casa com a coluna mais recente que publiquei na Folha, Dez vinhos para deixar o seu churrasco menos monogâmico. Falo sobre como os churrascos são celebrações por si só e que, neste calor infernal, deveríamos nos abrir para outros estilos além dos tintos tânicos. Os tempos mudam, estamos comendo diferente, o termômetro mudou, por que sua taça tem que ficar na mesma? Vale clicar no link e pegar a lista de vinhos, que começa em R$ 49.
O vinho natural vai salvar o mundo do vinho?
Eric Asimov, crítico do New York Times, aposta neste texto que sim. Os números mostram que o mercado encolhe, mas quando viaja por aí ele vê bares fervilhando de jovens com taça na mão, num clima muito diferente e mais relax.
3 mil vinhos por ano
Um jornalista especializado em vinhos da Wine Enthusiast ficou tão impactado com a aposentadoria do Pete Wells quanto eu. É impossível não pensar nos nossos hábitos quando não param de sair pesquisas que relacionam o consumo de álcool a doenças. Agora, já pensou provar 3 mil vinhos por ano? Ainda não fiz minha contagem, mas rezando aqui para que não chegue a isso. Aqui, o texto de Michael Alberty.
O melhor remédio para ressaca
Descobri faz tempo que Pedialyte faz milagres para a ressaca. Aparentemente, a atriz e comediante Chloe Fineman, do SNL, agora também descobriu e contou tudo ao Grub Street.
A viticultura Maori
Se você acha que o biodinamismo é a fronteira da mãe natureza no vinho, sabe de nada, inocente. Esse texto da Punch conta a história de produtores da etnia Maori, da Nova Zelândia, e fiquei salivando de vontade de provar.
Já foi no AE! Café e Cozinha?
Em São Paulo, a gente vive em bairros. Quando conseguimos cruzar as fronteiras muitas vezes impostas por nós mesmos (e pela correria dos dias) e desbravar outras vizinhanças é quase como se a gente viajasse. Esses dias, então, como brinca uma amiga, peguei meu passaporte e fui à Vila Mariana. A rua Áurea se tornou um pequeno polo de delícias e, de lá, já falei aqui do Aiô. Desta vez, conheci o AE! Café e Cozinha, numa casinha fofa do bairro. A primeira (boa) impressão foi a ausência das filas e da lotação da Zona Oeste; a segunda, o atendimento seguro e simpático; a terceira o pão maravilhoso e os embutidos da casa. Pedi ainda um homus de cenoura e, de principal, um peixe (perfeito) com purê de brocólis. Sei que soa pouco apetitoso, mas estava dos deuses. Pra terminar, um pudim bem caramelado. Saí rolando até o Sesc Vila Mariana, onde veria uma peça, e acabei cochilando com a barriguinha feliz.
Um almoço árabe
Para fechar com chave de ouro e para os mais destemidos, a newsletter da Lena Mattar veio com tudo na última edição. Ela fala das raízes árabes e traz receitas de família num compiladão aberto a todos. Fiquei absolutamente louca para tentar os quatro pratos que ela ensina, algo me diz que vai ser muito melhor do que os de restaurante.
Só mais um golinho
Incrível que a New Yorker ainda não tivesse entrado aqui.
Andei descobrindo o saque nos últimos anos e adoro combinar comidas também. Como venho da cerveja, a acidez faz falta em alguns momentos, mas entrega tanto que as outras bebidas não conseguem, principalmente a delicadeza e sutileza de algumas notas que parecem poesia simples.