Uma vida à mesa
Uma história de amor e do amor compartilhado pela mastigação e pelos goles
Nos últimos meses, alterno com minha irmã mais nova idas e vindas a Fortaleza, onde nasci e moram meus pais. Eu e ela ajudamos minha mãe e minha irmã mais velha nos cuidados com meu pai. Aos 93 anos, depois de uma vida cheia de energia, com muito trabalho e balada, ele tem sofrido com internações num hospital. Sem saber o que conversar com uma pessoa que está em delírio e ouve mal, apelei para a comida.
Em uma das visitas, falei com ele sobre o que gostamos de comer juntos, os pratos do sertão, para os quais ele não tinha muita companhia além de mim: sarapatel, buchada, panelada. Era o que ele gostava de comer desde que se entende por gente. Também lembrei de clássicos que cozinhamos juntos. Lembrei de uma coroa de costelas que assamos em um Dia Das Mães nos anos 1990. Faz um feito danado e é bem simples.
É um rack de costelas de porco enrolado e amarrado com barbante. Nas pontas, cortamos um pouco da carne para que as pontas dos ossos fiquem à mostra. (Pode ser que você já encontre a ponta do osso aparente no açougue.) Eles devem ser protegidos com papel alumínio (o que também dá certo efeito). Vão ao forno depois de ao menos 12 horas de marinada com limão, vinho, ervas, sal e pimenta. No meio da coroa, legumes com azeite e sal e as mesmas ervas, que também foram assados. É uma lindeza, minha mãe quase morreu de alegria quando viu sua coroa.
Desde a minha infância meus pais me ensinaram a amar a comida, ainda que não falassem disso explicitamente. Mas havia muito, muito prazer. Eram uns glutões, valorizavam ingredientes e preparos como as coisas boas da vida, e também os momentos à mesa, os bons restaurantes, a coisa toda.
No dia a dia, na hora do almoço, todos sentávamos à mesa, meus pais e os cinco filhos. A gente só começava quando todos já estavam ali. E conversava muito. (Até me espanto como conseguiam, considerando a minha dificuldade hoje com meus filhos.) Algum de nós podia até estar emburrado, mas não tinha essa, não dava pra escapar. Quando alguém não gostava da comida, dávamos um jeito: a cozinha aceitava substituições e no final todos comiam.
Meu pai fazia o supermercado aos sábados. Eu era sua companheira na função. Sempre adorei a atividade, apesar de leves traumas. Lembro de quando, aos 6 ou 7, me perdi entre as gôndolas e acabei sendo presenteada com uma fatia de presunto provavelmente por pena do atendente dos frios. Eu chorava, sem encontrar meu pai, mas não largava o presunto. Comia, comia, comia.
Esse ritual do mercado se repetiu até eu sair de casa, aos 23. Na adolescência, era mais difícil porque eu gostava de sair de noite e dormir de manhã. Meu pai era impiedoso, me acordava sempre que minha mãe, guardiã do meu sono, não estava por perto.
Ele ficava preocupado e orgulhoso quando arrebentávamos a boca do balão nos ingredientes e a conta chegava aos três dígitos (estamos falando aqui na década de 1990, era uma extravagância!).
Preparamos muitos almoços de Páscoa, Dia das Mães, aniversários, Dia dos Pais, muitas ceias de Natal, com a ajuda da minha irmã mais nova. Minha mãe sempre foi a confeiteira da família, ninguém se metia, e eu ficava na estação de carnes com meu pai.
Meus pais também eram bons de bar. Na minha infância, o cheiro de uísque e perfume demarcava o calendário: era sábado à noite, dia dos jantares dançantes do Náutico, o clube onde se conheceram. Não sei como tinham energia para, depois de noitadas que varavam horas, no domingo seguinte, preparar churrasco com cerveja, caipirinha e mais uísque. Haja banho de piscina para aguentar e coração de galinha para distrair as crianças.
Eu cresci e os hábitos deles me acompanharam, passamos a exercer essas atividades juntos. Passamos a dividir garrafas de vinho. Eles já tinham alguma litragem, compravam vinhos de caixa quando eu era criança de um representante de importadora (um vinho que eu jamais encontrei, chamado Poirot ou Pierrot) e já temiam o Liebfraulmilch. Uma vez, trocaram por um mês um apê na praia do Icaraí, a 30km de Fortaleza, por um apartamento em Paris, e meu pai gostava de dizer que, no período, não bebeu água, apenas “vinho nacional”.
Quando meu pai fez 90 anos, levei na mala para Fortaleza um Quinta do Crasto Vinha da Ponte 2012. O vinho era um escândalo, mas poderia ter esperado mais. Meu pai não. Fomos felizes nas primeiras taças, mas chegando às últimas brigamos por política. Já era 2021.


O último vinho que bebi com meu pai antes da internação foi no fim do ano passado, quando passei uma semana com ele e minha mãe antes do Natal. Tomamos um espumante Manus que eu provava para indicar (ou não) em uma coluna. Por Deus, o vinho era bom!
Respiro aliviada ao pensar nisso, embora a situação hoje não seja boa. Há semanas ele não mastiga ou engole, a alimentação tem sido feita por sonda. Como alguém que sempre amou a mesa, ele pede comida, diz que quer comer. Eu não consigo pensar em nada mais triste, mas não quero perder a esperança, quero acreditar e fazer planos. Que garrafa eu posso abrir se a gente conseguir dividir novas taças? Estou louca? Dizem por aí que a vida é muito curta pra se beber vinho ruim. Não dá para dizer que 93 é uma vida curta. Ainda assim, espero que se alongue para mais taças e aventuras à mesa.
Dicas para o feriado
Se você viajou e não se programou, publiquei na Folha, antes da Páscoa, um pequeno guia de como comprar vinho no supermercado e preparar o arsenal de viagem improvisadamente. Você pode ler a íntegra aqui, e a seguir um trecho:
Você não precisa ficar como na Netflix, onde olhamos os títulos por horas e não escolhemos nada. Nas gôndolas, os vinhos costumam ser organizados por países e isso já dá pistas do que encontrar: lugares mais quentes produzem vinhos mais robustos, alcoólicos; já dos mais frios (ou com altitude), vêm os mais elegantes e frescos. Os que vêm da Europa (chamada de "velho mundo" entre os aficionados por vinho) costumam trazer no rótulo suas denominações de origem.
Garrafa da Semana
Ainda no clima de achar bons rótulos no supermercado, recomendo o francês J.Moreau & Fils Chardonnay Les Coches 2022, vendido na Casa Santa Luzia, em São Paulo. Provei no último feriado, num sítio idílico de uns amigos, que prepararam um belíssimo arroz de frutos do mar. O vinho foi o trampolim ideal, e brilhou também ao lado de queijos macios. É elegante, tem acidez no ponto, sem sobras, e uma untuosidade persistente. Tem corpo leve, é bem equilibrado e traz uma curiosa nota de amêndoa. O preço anima, sub100.
Segunda impressão
Indiquei aqui há bem pouco tempo o Heiderer Mayer Grüner Veltliner Wagram, que tinha provado da safra 2017. Pois depois de influenciar uma leitora, que comprou uma garrafa e, ao experimentar, me marcou numa foto, eu resolvi comprar outras duas para consumo próprio e tive a feliz surpresa de encontrar um vinho delicioso, mas diferente. Estava menos complexo que o antigo, mas igualmente bom, com uma maçã verde tão nítida que era quase como se eu mordesse a fruta. Constatei que é bom jovem, mas vale comprar pra guardar também. Acho que parte do mérito é da tampa de rosca, que evita qualquer tipo de microoxigenação.
Vinho é um presente de Deus
E não fui eu quem disse, mas o Papa Francisco, que lançaria no ano que vem seu próprio rótulo. A história está aqui nesta coluna, bem como a sua paixão pela bebida.
O novo (velho) drink do momento
É impressionante o tanto de vida que o Martini tem. Bate qualquer gato. Há um século atrás, quando Dorothy Parker andava por aí de bar em bar, era a bebida mais cool que havia. Hoje, cem anos depois, voltou ao posto. (E quantos outros retornos não teve?) Mas agora o lance é: ele deve ser sujo (com água de azeitona) e também minúsculo. No caso dessa última característica, imagino que tenha a ver com o preço dos insumos, tudo pela hora da morte. Imagine se tomaríamos tantos quando Ms. Parker já tomou um dia. Colo aqui a famosa citação da autora, pra quem não conhece:
“I like to have a martini, two at the very most. After three I’m under the table, after four I’m under my host”
Já foi no Figueirinha?






Eu demorei demais para explorar os chineses da Liberdade. Depois do advento do Chi Fu e do Rong He, parei no tempo e só na última semana juntei uma turma boa e grande e peguei uma das mesas redondas com tampo giratório para pedir os dumplings, ensopados, fritos e outros do restaurante Figueirinha. É um caos, faz fila, mas é também maravilhoso (até mesmo por isso), o preço é honesto, a comida saborosa. Gostei da lula empanada e picante, do gyoza frito com gosto de anis, do bao na chapa com recheio de porco, das panquequinhas com cebolinha, do pato de Pequim. Só não pediria a cabeça de minion, um bao maquiado para as crianças. Melhor apostar na sopinha com macarrão. Junte um grupo e se jogue. Ah, e vale experimentar também o café da manhã, que serve toda sorte de dumplings.
Só mais um golinho
Peço desculpas a todos a quem ofendi.
lindíssimo texto, Belle querida. Um abraço ♡
Que texto bonito, Isabelle. Eu acho que essas pequenas alegrias, que ficam na nossa memória, são o que temos de mais precioso como herança na vida. Meu pai, um pouco mais novo que o seu, também é das comidas gostosas... Importante guardar essas histórias! Melhoras ao seu pai, siga com seus planos sim!