Em todo lugar a mesma comida
Quem é o culpado pela epidemia de labneh? E mais um supervinho de preço ótimo, as notícias da bebida na América do Sul e outros golinhos
Minha cabeça está muito cheia de pensamentos esses dias. Um deles é que está tudo com a mesma cara. Os mesmos ingredientes estão em todos lugares e todo mundo cozinha com muita coisa e muito processo. É possível que você esteja pensando o mesmo, já vi gente falando disso (estou lutando com unhas e dentes para ler o que meu colega Rafael Tonon escreveu na primeira edição brasileira da Esquire sobre o tema, mas está difícil encontrar na banca). Com o livro “As Perfeições” na cabeceira, em que jovens nômades digitais bem hipsters vivem uma vida perfeita (e monotonamente previsível) de Instagram, entendo que talvez seja inescapável, um sinal do nosso tempo. Mas ao encontrar coalhada seca/labneh em três restaurantes de diferentes origens, todo mundo fazendo meio a mesma coisa, quero fugir (pra onde é que eu não sei, porque em Estocolmo ou em Tóquio a maldita coalhada estará).
Um vídeo do Subway Takes culpa o Ottolenghi, um dos possíveis detonadores desse “tá tudo igual”. Embora eu o ame, concordo um pouco. Ele deu a fórmula mágica, afinal: uma coisa crocante, outra cremosa, uma coisa ácida, outra doce, um salzinho por cima, ervas, e por aí vai. Tudo ficou assim, tudo tem coisa demais, nada é mais simples. E, se for, você vai querer pagar?
A discussão pode ir para mil lados. Um deles é o da gentrificação da comida, que virou tema de dois episódios do podcast “Prato Cheio”, de O Joio e o Trigo. No primeiro deles, ouvimos uma reportagem bem apurada sobre como ingredientes típicos regionais foram incorporados pela gastronomia e se tornaram caros para suas populações de origem. (Vale insistir e vencer os primeiros minutos não exatamente sedutores.)
O episódio fala de como o dendê piorou e ficou mais caro e de como ingredientes tradicionais do Pará tem ficado impraticáveis para os próprios paraenses. Ao ouvir o segundo episódio, que fala da “gentrificação” num contexto rural da Mantiqueira (o que é um paradoxo, considerando que é um fenômeno urbano), senti até culpa: quantas matérias já não escrevi sobre os azeites e os vinhos dali? A região está mudando, ficando mais cara, e vai expulsar quem é nativo.
Mas numa escala bem mais superficial, voltando ao Subway Takes, a culpa, além do Ottolenghi, é também do Instagram. A gente come primeiro com os olhos para depois comer com a boca. E as referências viajam em tempo real. Um chef daqui pode “se inspirar” (copiar?) um de Dubai, assim como eu me inspiro (copio?) em uma receita que vi alguém preparar nas redes.
Como fugir disso? Como ser autêntico? Seria a comida tradicional ou regional a última fronteira da originalidade? Pode ser, parece que até o Ottolenghi já tentou sair da mesmice global que ele mesmo ajudou a plantar, considerando que acaba de lançar aqui no Brasil um livro chamado “Nostalgia”, com receitas de sua família e de seus coautores.
Por enquanto, tenho usado o livro feito pela minha mãe, com receitas copiadas à mão. O bolo de chocolate que eu fazia com ela aos 9 anos foi o do aniversário do meu filho na escola, um sucesso absoluto. A cocada de forno dela não poderia ser mais demodê, não está em Instagram nenhum, mas é deliciosa.
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Embora eu pudesse parar por aqui, me parece que levantei um assunto grande demais (muitos pensamentos, eu avisei) para um final tão singelo. Então deixo a caixa de comentários para que você, caro leitor, me ajude nessa barafunda contemporânea da comida.
Garrafa da semana (do semestre?)
Já são três dias desde que enxuguei essa garrafa. No meio tempo, provei dois vinhos cem pontos. Mas ainda não esquecei o Heiderer Mayer Grüner Veltliner Wagram, um austríaco elétrico, de ótimo preço, com um ataque de maçã verde poderoso. Desconfiei que a garrafa estava furada, porque escorreu rápido demais. O corpo era médio, segurou fondue de queijo, e na taça, ao esquentar um pouco (servido geladíssimo, como eu amo), foi mostrando complexidade, untuosidade, notas herbáceas deliciosas de tomilho. Ah, vale dizer que quase não pedi por conta da safra ser antiga, já tinha seis anos de idade. Mas, fechado com tampa de rosca, estava novíssimo, fresquíssimo. Um vinhaço, pra comprar de caixa.
Taças e mais taças da Sudamerica
Foi difícil ter outro assunto essa semana que não o vinho sul-americano. Foi lançado em São Paulo o guia Descorchados, que reúne a produção anual de Argentina, Chile, Brasil, Uruguai, Bolívia e Peru. Na Folha, escrevi sobre os vinhos que atingiram a pontuação máxima (tintos argentino e chileno) e os principais highlights do guia. Neste outro texto, analiso como o crítico Patricio Tapia tem um paladar claro e isso pode mudar o vinho que bebemos por aqui.


Douro lords
Indo pro velho mundo, outro evento que deu uma sacolejada na turma do vinho de São Paulo e do Rio foi a visita dos Douro Boys, com degustação em que mostraram como seus vinhos envelhecem bem. Entre as pérolas que serviram, vinhos fortificados com mais de cem anos de vida. Se você não conhece a história deles, pode ler esta coluna aqui publicada na última semana.
Fermentation society
A intrépida dupla da Cia dos Fermentados realiza a partir do dia 6/4 o Fermenta SP, uma semana dedicada aos produtos fermentados de comer e de beber. A ideia é fortalecer a cena da fermentação no Brasil, arregimentando mais seguidores e mostrando como usar criatividade, técnica e biodiversidade para desbravar novos sabores. Entre os participantes estão Tan Tan, Krosta, Alba e outros. A programação está aqui.
Comida (e bebida) de Brasserie
O Votre faz três anos e cria menu especial comemorativo harmonizado por Daniela Bravin e Cassia Campos, da Sede 261, a partir da terça (8). Entre os pratos estão arroz negro crocante com lula salteada, filé grelhado com mil-folhas de batata e molho cremoso de foie gras e cogumelos, tartare de tomates e figos e lagostins assados com maçã verde Maquereau.
Já foi no Fitó Contemporânea?



Bastou um vatapá de galinha para Cafira, chef piauiense, ganhar meu coração. Foi o prato que ela preparou no jantar em comemoração ao Dia da Mulher, no Metzi, em São Paulo, em que nomes interessantíssimos da comida e da bebida se reuniram para preparar um banquete. No Fitó Contemporânea, no novo prédio da Pinacoteca, na Av. Tiradentes, é possível prová-lo também. E deveria ser obrigatório. O restaurante, que ela comanda ao lado de Mario Panezo (ex-Feriae) é todo de vidro, um deslumbre: de dia vê-se as obras do museu; de noite, as luzes são rebaixadas e revela-se o skyline da cidade, embora ele não esteja no topo de um prédio. A carta de vinhos é interessante e sempre há novidades em taça. Como há coravin, tem muita oferta em taça, o que vale aproveitar. Fui de branco (Chardonnay do Matias Riccitelli, complexo como é de se esperar dele), rosé (um provence de preço mais amigo, mas exuberante e que mandou bem com um crudo) e no tinto Ridículo Cabernet Franc, delicioso. O serviço foi superatencioso e simpático. Mas a dica é para um momento especial, uma comemoração ou um date em que a aposta é alta, porque os preços vão de acordo.



Só mais um golinho
Aposto que você já passou por isso com Gut Oggau (shittywinememes nunca errou).
Esse assunto ai merece uma série de muitas news! Eu amei esse Subwaytakes e ele levantou esse papo aqui em casa também.
Acho que as redes, muito mais que o Ottolenghi, são culpadas por essa mesmice. Ele pode até ter popularizado um estilo de cozinhar, mas acho que foi o acesso de todo mundo às mesmas receitas, os influenciadores copiando uns aos outros para pegar carona numa receita que gerou mais engajamento e a insana demanda por coisa "nova" o tempo todo que aceleraram essa mesmice. O povo já não tem mais de onde tirar ideia e acaba criando esses pratos aí, com mil camadas, mil ingredientes, mil técnicas. Vira e mexe sai coisa boa, mas muitas vezes saem coisas estranhas.
Nos restaurantes idem porque, querendo ou não, os chefs também estão nas redes e são produtores de conteúdo, influenciando e sendo influenciados.
Acho até que o próprio Ottolenghi virou vítima disso com sua cozinha de produção da qual saem (tem que sair) receitas o tempo todo. Os livros da série OTK (Ottolenghi Kitchen) trazem umas receitas nesse estilo e acho que se fiz três foi muito. Ainda não vi o Nostalgia, mas estou curiosa pra ver se ele conseguiu sair disso. Mas pelas entrevistas que ouvi, não sei se são receitas de família tal e qual. Acho que a maioria tem um "toque Ottolenghi" com um ingrediente a mais aqui, um molho diferente ali...veremos!
Estou lendo o As mentiras da nonna, do Alberto Grandi e tenho a sensação que tudo que vivemos é uma extensão do que ele comenta no livro. Somos narrativas e agora aceleradas pela distância invisível que as redes sociais nos colocam. Somos tão plurais que somos pasteurizados pela globalização e curiosidade de provar e sermos um pouco de tudo. Os litros de pensamentos não se destilam facilmente, mas com as leituras críticas e um pouco de saudosismo de uma época mais analógica e de papel a mente aquieta.