O White Lotus do vinho argentino
Dos oxidativos aos tintos levinhos, sofri uma lavagem cerebral (e encarei uma maratona de degustações) para conhecer o país além da malbec
Sou uma sobrevivente. Há duas semanas, encerrei minha estadia no que chamei de “White Lotus do Vinho Argentino”, uma temporada de seis dias de visita a restaurantes de Buenos Aires, a convite do restaurante Don Julio, que ocupa o primeiro lugar do ranking da América Latina do 50 Best. Um grupo de 30 pessoas, entre chefs, jornalistas e comunicadores do mundo da comida, estava ali para celebrar a Fiesta del Tomate, quando quilos e mais quilos deles são distribuídos aos vizinhos do restaurante em Palermo. Embora o foco da excursão de luxo fosse mostrar toda a engrenagem por trás do restaurante (e nos convencer de que ele é o melhor da América Latina mesmo), além de oferecer dois banquetes preparados por chefs latinos (veja mais abaixo), o que me tocou mesmo foi o vinho. Era muito vinho bom. E diverso.
“Estamos aprisionados na Malbec”, me disse Pablo Rivero, sommelier que é dono do Don Julio. Ele planejou para os convidados flights extensos e temáticos de diferentes estilos para tentar se libertar dessa prisão. Quem sabe assim espalharia aos quatro ventos — e continentes — que há muito mais na Argentina que a estrela aveludada de notas violetas. É preciso dizer que ele não é o único: esforço semelhante é feito pela sommelière Paz Levinson, que já trouxe ao Brasil seu painel de vinhos argentinos para além da casta mais famosa, e pelo grupo institucional Wines of Argentina, que em um jantar informal no ano passado trouxe branco, tinto e rosé fora do perfil alcoólico e encorpado que se tornou clássico por ali.
Com a turma do Don Julio, a primeira amostra dessa diversidade argentina foi um chute na porta: um painel de vinhos oxidativos, os chamados vinhos de flor. Comuns na região do Jura, na França, eles são o que todo moderninho do vinho busca, e não costumam ser o que se espera de um país como a Argentina.
Curiosamente, um dia antes, conversava com uma amiga que fez uma “sardinhada” na brasa porque se encantou pelos peixinhos quando os provou com os vinhos do Jura. Mas ali na minha experiência portenha a harmonização dos oxidativos foi com embutidos feitos no El Preferido de Palermo, que faz parte do grupo de Rivero, além de outros antepastos. Ficou provada a versatilidade desses vinhos, bem como a sua capacidade de prolongar o apetite.






Ainda sobre eles, me fazem pensar na curiosa relação de amor e ódio entre vinho e oxigênio. O oxigênio pode ser fatal para um vinho e destruí-lo, acelerando o processo de transformação em vinagre. Mas na produção, os vinhos podem se beneficiar da micro-oxigenação. No caso dos vinhos de flor, ela dá um caráter amendoado e notas quase salgadas. O que acontece é que as as barricas não são enchidas até o topo e fica um espaço de ar entre o líquido e a “tampa”. Na superfície do líquido, então, se forma uma camada de leveduras (a tal “flor”), que protege o vinho do contato geral com o ar, mas que permite a micro-oxigenação.
Neste primeiro painel, começamos por dois rótulos que lembravam Jerez e que, segundo Rivero, eram comuns no país no começo do século 20. Também conheci o projeto Los Dragones, que faz um blanco de flor em San Juan e que viria a me impressionar em outros momentos da viagem. Uma pena que esses vinhos oxidativos não estão no Brasil, mas fica a dica para os viajantes e também para os importadores.
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Poucas horas depois provei um monte de Pinot Noir feitos desde Mendoza até Chubut, na Patagônia, o lugar mais austral do país. Produtores conhecidos por aqui (Otronia, Zuccardi, Zorzal e Matías Michelini por exemplo) e outros nem tanto, como Contra Corriente e Canopus.
Mas foi no segundo dia que o White Lotus pegou mesmo, porque partimos para La Comarca, a fazenda onde há criação de gado e cultivo dos vegetais e ervas utilizados no restaurante. Ali, uma degustação de queijos com produtores de norte a sul do país acompanhou brancos, laranjas e borbulhas de alto nível. Nesse dia, de um calor infernal, provamos 44 vinhos, repetindo produtores, mas nunca rótulos. Fomos dos pét-nats mais desencanados a coisas seríssimas como magnums de Noemia A Lisa Malbec 2021 e Jeroboam de Petit Caro.


Já de volta a Buenos Aires, na festa do tomate, os sommeliers parecem ter dividido os vinhos que provaríamos entre: 1. clássicos e ícones, servidos no primeiro dia de festa, no Don Julio; 2. a nova Argentina jovem e descolada, no El Preferido de Palermo, onde teríamos nossa segunda jornada.
A beleza dessa escolha é que foi justamente na última noite que encontrei meu crush da viagem, o tinto leve da Patagônia (meu deus como amo essa região!) Miras Joven Trousseau, que nem é dos mais caros e que está no Brasil, lembrando que não são só os vinhos de sei lá quantos mil reais que ficam na memória e que podemos ser felizes com o que cabe no bolso.
Meu White Lotus argentino foi intenso. Ninguém morreu no primeiro episódio, felizmente, ainda que a aventura tenha incluído um pequeno acidente de carro. Foi uma lavagem cerebral para mostrar que nem só de comida se faz um grande restaurante e também um curso intensivo do que um país que leva a cultura do vinho a sério é capaz de fazer. E de como sommeliers aguerridos podem fazer a diferença e ensinar a quem quer, de fato, aprender.
(Fica aqui também meu agradecimento a todos que me serviram nessa semana de mergulho no vinho argentino e que tiveram tanta paciência quando eu quis tirar foto de todas as garrafas. Dsclp, pissual!)
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Vai ter mais sobre Pablo Rivero e os vinhos do Don Julio na coluna de sexta-feira da Folha. Sugiro a leitura.
E a comida?
A ideia da Fiesta del Tomate era reunir chefs estrelados para darem suas versões do que um tomate é capaz. Entre os brasileiros, Ivan Ralston, do Tuju, cozinhou no primeiro almoço no Don Julio e Helena Rizzo, do Maní, no segundo, no El Preferido. Entre os destaques para mim estão o colombiano Jaime Rodrigues, um gênio e um doce, e o mexicano Tomás Bermúdez, ambos com pratos intensos e com alto índice de prazer.



Além da programação festiva, conhecemos outros restaurantes incríveis. Mas para não parecer que agora eu trabalho para a embaixada argentina, responda aqui a minha enquete e diga se há interesse em uma eventual edição temática sobre restaurantes (e alguns bares) de Buenos Aires.
Agora, se você ama a Malbec, não deixe de ler essa edição:
Não fale mal de Malbec perto de mim
Nesta semana, o nome de uma uva não saiu da minha caixa de entrada. Todas as agências de PR do mundo tentaram vender a mesma pauta, o dia da Malbec. Cada ano, parece que o calendário do vinho cresce com a incorporação de novas variedades que passam a celebrar uma espécie de “aniversário”. No caso da Malbec, a data surgiu em 2011 quando a Wines of Argent…
Taças cada vez menores
Se você sai por aí e pede vinho em taça já se ligou que elas estão cada vez menores. Não o objeto taça em si, mas a quantidade de vinho. Fiz essa “denúncia” na Folha e colo aqui o link para quem quer reclamar comigo. Lancei até um pequeno manifesto pelo uso das garrafinhas medidoras. Assim ninguém se sente ludibriado.
Para ler mais de vinho (e outros)
Minha colega Tânia Nogueira escreve sobre a nova indicação de procedência que temos no Brasil: a dos vinhos do Sul de Minas. Ela recomenda os rótulos de que mais gosta. Na Folha.
Como Chablis está enfrentando o aquecimento global? Já pensou perder aquela personalidade maravilhosa? Aquela acidez e a sensação de morder um giz? Do Eric Asimov, no NYT.
O vinho se faz no vinhedo, dizem hoje por aí. Mas e como fica o trabalho do enólogo? E os blends, que são a cara de regiões célebres como Bordeaux? Leia aqui no Club Oenologique.
Adorei essa história das peixadas com birita na pré-história do sul do Brasil.
Um docinho antes de terminar
Amo Pavlova, que foi a sobremesa do meu almoço de casamento. Essa daqui é uma das mais lindas que eu já vi. E tem também a da Paola Carosella, que a Gama publicou.
Só mais um golinho
Baita edição boa! Me lembro até hoje quando fui pra salta (há MTOS anos) e do meu espanto ao tomar um vinho argentino realmente fresco, de altitude, pela primeira vez - fora o que a vinícola colomé não é escandalosamente linda e especial.
Amo o Miras - quando fazia a adega do Quitanda inclui lá! Ótima pedida :)