Viajar e inventar memórias
Quando a nostalgia embota as lembranças e quando sofremos instantaneamente de saudades por algo que mal acabou
Para que viajamos? Mudar de cenário, viver algo diferente, conhecer, descansar e comer e beber bem, claro. Não importa o tipo de turista que se é, comida e bebida sempre vão estar na lista de desejos. Acabei de voltar de uma temporada de quase dez dias na casa dos meus pais, em Fortaleza. Busquei tudo da lista acima e encontrei um pouco de nostalgia, um pouco de estranhamento (já saí de lá há 20 anos), um pouco de alegria, um pouco de frustração — sim, o tempo transforma memórias simples em afetivas (ai meu Deus, essa palavra tão desgastada) e nos engana ao transformar em ótimo algo que nem era tão bom assim (sabe aquele seu ex? Opa!).
Nesses dez dias, entendi que os caranguejos são maravilhosos porém realmente um trabalho do cão, que alguns sorvetes são superestimados, que nem sempre o que buscamos é excelência técnica e inventividade contemporânea, que o bom e velho regional é que dá aquele quentinho no coração — como uma boa paçoca com banana. Minha mãe descasca um abacaxi como ninguém e seu bolo de macaxeira continua ótimo, assim como seu filé acebolado.
Esse daí, feito na manteiga com sal e pimenta-do-reino moída na hora, na frigideira onde ela previamente tostou cebolas e reservou para dar lugar a ele por seis minutos de cada lado, eu cansei de comer na infância. Desta vez ousei harmonizar com um tinto num calor de 29 graus. Ainda bem que a gente arrisca nessa vida, deu bom demais um Côtes du Rhône no Nordeste. Era o La Fiole da Maison Brotte, que é importado agora pela Grand Cru. Parece que eles foram feitos um para o outro e que eu já os conhecia como casal de uma vida inteira, como se fosse a tradição dos meus pais. Foi como fabricar uma (lá vem ela de novo) memória afetiva. A mesma sensação que tive ao experimentar um churrasco de carneiro, que, apesar de assado na casa de amigos paulistas, tinha o gosto do Nordeste e foi acompanhado de um Syrah produzido pela Miolo em Pernambuco (este se chama Testardi). Obviamente, eu jamais tinha comido o carneiro da minha infância com Syrah, ainda que fosse um primo crescido próximo ao Cariri. Foi tão bom, mas tão esquisito: era uma harmonização regional, ainda que apenas nas loucas viagens da minha cabeça.
Vinho é também pra quem gosta de viajar, claro. A gente viaja sem sair do lugar, nas notas olfativas (cada um, afinal, tem sua roda de aromas próprios, suas referências a que recorrer), na textura, no sabor; dá também pra viajar na história desse vinho, ou na história de onde vem, de quem o faz; dá pra viajar ainda no que ele desperta, em como ele casa com a comida, com a situação. Pra viajar com uma garrafa, o importante é estar atento, com a consciência alerta para seus próprios sentidos e o que eles fazem com seu cérebro.



O filé da minha mãe não existe mais sem 70% de Garnacha e 30% de Syrah. Fica também a certeza de que uma memória afetiva nova, ou mesmo fake, não é pior que algo que o tempo exagera e que não resiste às mudanças de gosto e paladar.
Garrafa(s) da semana
Na verdade, poderia ser a vinícola da semana. Eu ando encantada pela Amitié, que é uma nova vinícola brasileira fundada por duas amigas, a sommelière Andreia Gentilini Milan e a enóloga Juciane Casagrande Doro. O vinho mais badalado delas é o Viognier Amitié, que acaba de receber medalha de ouro no concurso da revista Decanter. Concursos são polêmicos, mas posso falar que a revista Decanter é séria e todos os brasileiros que fazem parte do júri, idem. Provei o Viognier e ele consegue unir a gordurinha clássica da variedade com uma acidez salina superinteressante e inesperada. Além do pêssego característico, tem um toque floral e uma nota de tangerina delícia. No site, é vendido a R$ 99. Se tiver um pouco mais pra gastar, não deixe de provar o espumante Nature delas, que é um desbunde. Deixou meus amigos de boca aberta (e esperando por mais).


Novos vinhos do Brasil
Uma chance de conhecer e comprar os vinhos da Amitié e de outras boas produtoras brasileiras não tão mainstream como a paulista Casa Verrone e a gaúcha Garbo, é ir ao Vinho da Vila, festival de vinho nacional que acontece neste fim de semana (5 e 6) no parque Burle Marx, em São Paulo. São mais de 20 vinícolas, do Nordeste ao Sul do Brasil. Vai ter também música e artesanato.
Para seguir
Um perfil bom pra acompanhar e conhecer mais sobre o que é produzido no país é o Brasil de Vinhos, que é site e também está no Instagram. Feito por uma equipe apaixonada, conta o que tem do Norte ao Sul do Brasil quando o assunto é o nobre mostro de uvas viníferas fermentadas.
Para refletir
Seria o Fitzgerald o novo Negroni? Tenho ouvido por aí e lido relatos de que é o drinque mais pedido em muitos bares. Tenho amigos viciados, que só pedem isso.
Para refletir 2
Seria o bar de audição o speakeasy dos anos 2020? Em São Paulo, depois do Caracol (cujo retorno em novo endereço é ansiado) e do Domo, é a vez do Elevado Conselheiro, no Bixiga, que está em soft opening até o dia 11 de agosto. O irmão mais velho, na Santa Cecília, é ótimo destino pra quem ama vinho.
Para comer muito macarrão
O Pasta Shihoma faz dois anos neste domingo (6) e tá reunindo uma turma da pesada para comemorar: Elisa Fernandes, do Clos, Irina, do Cuscuz da Irina e a maravilhosa Analu Torres, melhor degustadora do Brasil e minha amada professora de francês, que fica responsável pelos vinhos.
Já foi no Varal?
Sabe a sensação de ir a uma festa em uma casa que você não conhece o dono mas se apaixona pelo lugar? Uma casinha como as que estão sendo demolidas aos montes para que prédios de minúsculos apartamentos sejam erguidos? Daquelas que tem jardim modesto, mas quintal generoso, uma pequena varanda, caquinhos de piso vermelho e muitas plantas? Tem um bar assim em Pinheiros e é preciso rezar pra que nenhuma construtora chegue perto, o Varal. Apesar de uma aura meio playba, a luz é baixa, a música é alta, a comida é excelente (arroz de polvo de fazer muito restaurante metido a besta chorar e uma couve-flor digna daquela piada: “Você já perguntou se a couve-flor quer ser tudo isso que você está querendo dela?”) e a carta de drinques é inventiva e toda baseada em cachaça. Amei o Pai d’Égua (cachaça de jambu, maracujá, rapadura e pimenta dedo de moça) e recomendo.



Só um golinho
- Cho-ca-da fiquei que chegaram vinhos do Snoop Doggy Dog ao Brasil. Preciso provar ontem, se alguém já tomou, conta aí. Não deve ser muito bom, mas eu quero estar errada e gostar demais.
- Ele é muito amigo da Martha Stewart e vale acompanhar essa amizade.
- A melhor faca para cortar vegetais é a Nakiri, segundo essa reportagem da Bon Appétit. Vale ir até o fim e assistir ao vídeo sobre utensílios usados para fazer um menu Omakase de 30 (!!!!) etapas.
Adorei o mix de Nordeste com Garnacha e Syrah, as memórias afetivas (sou dessas) e ao "quero estar errada e gostar demais" hahaha
Amei a estrutura da newsletter como um todo. Vida longa ao conteúdo de vinhos com humor e taninos. Vida longa à Saca essa rolha!