Eu sou meio contra menu kids. Sempre fui uma criança que comeu de tudo, acompanhava meu pai, na infância inteira, nos mil pratos de miúdos ensopados que são tão tradicionais na culinária nordestina, a despeito da cara de nojo dos meus irmãos. Mas Deus me puniu com crianças seletivas, que temem qualquer traço da cor verde em seus pratos, que desprezam legumes, que fogem do feijão. Na introdução alimentar, animada pela descoberta deles de todos os sabores, eu pensava ao ver crianças de 7 anos virando a cara para abobrinhas e couves: “Comigo não, violão. Com os meus vai ser diferente”. Mas, como sabemos quando temos filhos, ser mãe (e pai) é cuspir pra cima: tudo o que criticamos, fatalmente, viveremos em algum momento. Meus filhos, pra minha dor e sofrimento, viraram grandes entusiastas de bifes e de spaghetti na manteiga.
Até que os levei ao Mocotó, o original, que completa 50 anos de história fazendo boa comida nordestina na zona norte de São Paulo.
Esse dia foi louco — e preparado durante bastante tempo. Claro que meus filhos estão familiarizados com tempero nordestino. Na minha casa tem farofa todo dia; de vez em quando, tem baião-de-dois e peixadinha; e quando nos empolgamos, até um cabritinho no coentro rola. Mas muitas vezes esses pratos são ignorados e tratados com desprezo. No Mocotó, eu pensei, preciso achar o que é nordestino mas meio parecido com o que eles gostam.
A primeira saída fácil era a carne de sol, que além de ser maravilhosa, é tipo um bifão, vem numa chapa, vermelhinha por dentro, tostadinha por fora. Ela vem acompanhada de chips de mandioca, que é tipo uma batatona louca. Depois, claro, os dadinhos de tapioca. Aliás, os dadinhos fizeram com que eles quisessem ir ao Mocotó em detrimento de um rolê de bicicleta. O que eu não esperava é que o prato que dá nome ao lugar fosse ser o FAVORITO do mais velho (e mais seletivo) dos meus filhos. Ele provou o caldo gelatinoso e gordo, quase doce, e perguntou: “Pode comer com farinha?”, e na sequência sugeriu um brinde e matou em goladas sua cajuína.
O Mocotó continua ótimo, está com menos fila do que antes, traz um cardápio excelente de não alcoólicas para brindar com as crianças (e agora tem uma cerveja da casa bem amarga pros adultos). Mas o que mais me chamou atenção nesse passeio foi ver meus filhos reconhecerem uma cultura que não é a deles, mas que de alguma forma também é. Assim que botou o caldo de mocotó na boca, meu filho entendeu que aquilo era bom, reconfortante, a ponto de querer repetir em casa: “Mãe, você sabe fazer?”
Eu não sei, mas posso tentar, tenho a receita, do livro do Rodrigo Oliveira. Mas será que ele ia gostar de tomar em casa? Fiquei tão, mas tão feliz com a proximidade cultural que adquirimos naquele dia que resolvi não abusar da sorte. Vamos voltar ali pra tomar de novo, daqui umas semanas ou poucos meses, um intervalo longo o suficiente pra ele não enjoar, mas curto o bastante pra que ele não esqueça. A única dúvida é se peço sem a cebolinha fresca que claramente é adicionada ao final. Essa guerra contra os verdes… sei não.
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A comida do Mocotó, pra mim, lá no começo quando eu conheci o restaurante, era um jeito muito feliz de matar as saudades de casa, mas também de me frustrar: enquanto a carne de sol me deixava virada de paixão, o baião-de-dois trazia muito mais que o arroz, o feijão e o queijo que eu esperava. Eu gritava em silêncio “isso não é baião!”. Hoje, 20 anos longe do Ceará, mais madura e aberta, vejo que, sim, é baião. Afinal, o Nordeste é grande, e comida boa é comida boa, não importa o ingrediente ou a tradição.
Com a cabeça aberta, nesta última visita, me senti reconectada às comidas da minha família, ainda que os temperos fossem outros (oi cominho!), e orgulhosa de ver que, de alguma maneira, o legado da mesa e o gosto por certos sabores, texturas, combinações são passados por gerações com surpresas como essa do caldinho.
(Se você resolver visitar o restaurante neste mês, vai ver a exposição que conta a história do Mocotó desde sua fundação. Essa entrevista com o Rodrigo para a Gama conta um pouco também.)
Garrafa da semana
Essa semana fiz uma visitinha à loja Toque de Vinho e voltei a provar o La Causa Cinsault Gran Reserva, que vem da região de Itata, no Chile, e é perfeito para as noites mais quentes: é leve, fresco e traz mil camadas a serem desvendadas. Na minha tacinha de degustação, consegui encontrar tomilho, alecrim, violeta e groselha bem suculenta. É leve, sim, mas não simples — aposto que se tivesse ficado mais tempo com ele teria achado mais coisa. Perfeito pra sextar, pra levar na viagem, pra acompanhar pratos leves (tem um tanino bem fininho e adstringente no ponto certo).
Taça por menos de R$ 40
Em muitos lugares o vinho em taça anda pela hora da morte, mas essa semana, ao visitar o Più, vi rótulos interessantes e que fazem boa combinação com a comida de lá a pouco mais de R$ 30. Tomei o ótimo Castelnuovo Delle Venezie Pinot Grigio 2020 por R$ 33 e meu acompanhante o tinto do Dão Val da Ucha Touriga Nacional por R$ 36. No Cora, o austríaco Zero-G, um Gruner Veltliner, que eu amo, tem aroma de pera e na boca é puro rocha do mar, saiu por R$ 37.
Jerez mais uma vez
Todo ano fico de cara com a programação e o entusiasmo da turma do Jerez Week, que vai de 6 a 11 de novembro. Minha dica é tentar ir a pelo menos um dos eventos e ficar de olho na Gabi Frizon, também conhecida como A Louca do Jerez e uma das pessoas que mais manja desse tipo de vinho no Brasil. Ela vai promover um aulão no dia 6, às 15h. A programação completa da semana tá aqui.
A crítica de comida na TV
Acabou de estrear e já é a nova queridinha de geral da gastronomia a série argentina “O Faz Nada”, sobre um crítico gastronômico malíssimo, totalmente dependente da empregada doméstica que trabalha para ele há mais de 40 anos, e que se vê só depois de sua morte. Ele diz que uma crítica gastronômica ruim angaria mais leitores que uma boa e é curioso ver como (a vida imita a arte) está quebrado e sobrevive vendendo obras de arte de família. Não pirei, fico achando que a gente gosta tanto quando a comida vira tema que nem presta atenção na qualidade da história. Mas tão falando muito bem e vou tentar não desistir ainda. No Star+.
Já foi no Cora?
O Cora chegou fazendo barulho, no terraço de um prédio na Amaral Gurgel com General Jardim, no centrão de São Paulo, bem na frente do Minhocão. Comandado pelo chef Pablo Inca, serve comida de ingrediente sazonal. Fui duas vezes, mas a segunda me encantou mais, quando provei um crudo de peixe branco com caju (ele mesmo, nada de castanha) e coentro e uma belíssima flor de abobrinha recheada de ricota, damasco e pistache e levemente empanada e frita. De tão linda, parecia de mentira. Entendi, finalmente, todo o frisson gerado em torno desse ingrediente raro e delicado. Esses dois pratos, com essa tacinha supracitada do Gruner Zero-G, é um baile inteiro.
Só mais um golinho
- Ainda tem dificuldade para entender o que são taninos? O Shitty Wine Memes explica: