Um oásis com ostras mignonette e Gibson
Um almoço inesquecível com uma quantidade indecente de manteiga me fez pensar em como se ganha tempo quando nos entregamos ao prazer
Você já se deparou com um oásis? No ano passado eu tive a sensação de ter encontrado um. Eu estava a dois dias de uma mudança de casa, em meio à separação de centenas de livros (sem exagero) pra doar, de todos os CDs acumulados por duas vidas, de vendas de churrasqueira a estantes por DM, e ainda assim achei que não era o caso de deixar passar a oportunidade do almoço comemorativo de 15 anos do restaurante Chou, em São Paulo.
Eu não sabia muito, mas o que me disseram era promissor: seria uma homenagem à escritora norte-americana M.F.K. Fisher (1908-1992), uma das maiores autoras sobre comida que já pisou sobre a Terra e de quem sou grande admiradora, e o cardápio seria composto por pratos clássicos da culinária francesa, preparados por Gabriela Barretto, dona e chef do restaurante. Essa comida seria harmonizada pela Gabriela Monteleone, que assina os vinhos do grupo DOM, do Cuia Café e de outros bons estabelecimentos da cidade, além de ter seu projeto pessoal Tão Longe Tão Perto cada vez mais firme. Confirmei a presença e rezei para o dia chegar.
O que eu não sabia é que Barretto, antes de abrir o Chou, tinha estudado letras e conhecido a obra de Fisher depois de formada. Estudava na Cordon Bleu, em Paris, quando uma amiga indicou a leitura. Foi como uma revelação, a iluminação de que poderia sim juntar os dois universos, a comida e a literatura. “Foi a melhor coisa que eu li, e olha que eu fiz Letras”, conta. Comprou um compilado de todos os livros de Fisher e pegou emprestado o título de um de seus clássicos, “Como Cozinhar um Lobo”, agora reeditado pela Companhia de Mesa, como inspiração para seu livro “Como Cozinhar sua Preguiça”.
Para o almoço, além de pensar em todos os detalhes da refeição, ela selecionou passagens de seus livros e os leu em voz alta. Se você já ficou arrepiado pensando em sarau, foi o oposto disso; foi celebratório, mas também divertido, quase um show.



Os trabalhos foram abertos com um Gibson, drink favorito da autora, que é uma versão do Martini muito popular na primeira metade do século 20 e que substitui as azeitonas por picles de cebolas. São necessárias duas unidades. Não se usa também bitters, como era comum fazer com Martinis. O elegante coquetel acompanhava duas suculentas ostras frescas e sauce mignonette, feito com chalotas, vinagre e pimenta-do-reino.
À forma clássica, não lidaríamos ali com uma sequência de uma dúzia de pequenos pratos, mas três deles em boas porções. O segundo, então, foi uma surpresa abstoluta: um poirreaux vinaigrette, um clássico de bistrô, preparado com alho-poró, maionese, mostarda dijon, cebola roxa e ovo mignonette. Parece pouco, depois de ostras que eram mousse? Pois bem, chora restaurante-vegetariano-intelectual-cabeçudo: levou o prêmio de legume mais divino que experimentei no ano (e olha que já estávamos em novembro).
Enquanto isso, as taças eram enchidas por vinhos brancos franceses, todos da importadora De La Croix, alguns com safra esgotada (colo aqui as fichas técnicas mesmo assim), mas todos muito bons, com o perfil salino, de acidez nas alturas e elegância perene, como o Muscadet Sèvre et Maine Vincent Caillé Gorges, biodinâmico, e o Chenin Blanc Bel Air do Domaine La Grange Tiphaine, do Loire.


Uma pescada branca paraense assada em crosta de sal e servida com beurre blanc arrematou o almoço. Ao servi-lo, Barretto leu a passagem de “Como Cozinhar um Lobo” em que Fisher diz que “quanto melhor o peixe, mais simples deve ser seu preparo”. O sal, sabemos, é o par perfeito de qualquer morador das águas do mar: é, de certa forma, parte deles, e perfeito para ressaltar seus sabores. Nesta técnica, a crosta protege a carne de forma que alcance a umidade perfeita. E o molho branco e generoso de manteiga é uma escolha tão luxuosa quanto indecente — já viu o preço da manteiga hoje?
Dois brancos acompanharam: o incrível Bott Geyl Point Cardinaux Métiss, da Alsácia, uma lindeza sem tamanhos feitas com 35% Muscat d’Alsace, 35% Riesling, 20% Sylvaner + Chasselas, 10% Pinot Blanc, que tem acidez mas conversa com a manteiga com sua untuosidade; e o 100% Aligotê borgonhês Ilagoûté, esse sim manteiga pura.
Ainda aconteceria: uma sobremesa completamente insana, um abacaxi borrifado com açúcar e suco de limão doce. Seguindo as instruções de Fisher, a ideia era derramar sobre as frutas “um copo de vinho cheio de cada um dos seguintes e não outros licores, todos bem misturados: conhaque, kirsch, Cointreau, Benedictine, marasquino e um toque de kümmel. Mexa levemente e ponha sobre gelo durante duas horas. Pouco antes de servir, derrame metade de uma garrafa de champanhe demi-sec sobre a salada” (no original, são muitas frutas). Lembrando que este é um livro escrito no contexto de guerra. “Sim, é loucura sentar-se saboreando essas impossibilidades, enquanto as manchetes berram que o lobo espreita pelo buraco da fechadura. Porém, não lhe pode causar dano gozar de vez em quando de uma pequena folga da realidade.”



Eu também estava fugindo ali, e coroei esta fuga com um doce de três leites servido com queijo Avecuia, da queijaria Rima, que faz essas iguarias com leite de ovelha. Além de Fisher, a homenagem era para os produtores parceiros do restaurante, como a Rima e o Mar Direto, de Cauê Tessuto (aqui perfilado na Gama), que forneceu o peixe e as ostras do menu.
Já são dois meses deste almoço, e ao pensar nele ainda sinto o alívio de ter aberto mão da labuta sem fim para um momento de prazer. Quando conseguimos nos dedicar à comida com atenção plena, para usar mais um jargão do nosso querido mundão contemporâneo, a impressão que fica é a de que ganhamos tempo. Tempo de qualidade, experiência de vida, oportunidade de aprender.
Além da barriguinha cheia, saí com a ideia fixa de que os almoços e jantares especiais e com edição limitada, tão comuns hoje em restaurantes mais gastronômicos das principais cidades do país, que são propostos em parceria com o outros cozinheiros e/ou que seguem uma temática específica, são as melhores oportunidades para o prazer gustativo. É preciso ter um preparo do bolso também, não é que vai ser barato, mas é o melhor jeito de viver essa era da experiência, porque é também quando o cozinheiro se impõe desafios. Não tenho dúvidas de que Gabriela Barretto, enquanto abria a crosta de sal do peixe e evocava nossa ídola compartilhada, estava num nível de concentração e adrenalina parecido com o que sentia no começo da carreira. E não é lindo ver essa disposição e juventude 15 anos depois?
Tá tudo bem com seu prato?
Já devolvi pratos que tinham problemas às suas cozinhas. Passei por isso algumas vezes. Sempre tive convicção, quase sempre fui muito bem atendida. Aqui tem uma discussão sobre esse ato que é chato pra todo mundo. (Minha passagem favorita é a que diz que você não precisa receber o DNA de ninguém com a sua comida.)
Não olha agora, mas acho que ele tá chorando
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Ovo em nuvem
Achei essa receita fascinante e me deu muita vontade de testar. Quem fizer primeiro conta.
Coquetel escandinavo
Já percebeu como a onda minimalista está em todos os lugares? É design escandinavo pra cá, Bauhaus pra lá. Chegou à coquetelaria e, depois do gelo quadradão e transparente, a onda agora é a casca de cítrico cortada em circulo. Em São Paulo, o bar dos cravos foi um que aderiu.
Só mais um golinho
- Nem é nossa data do amor primordial, mas espero que você tenha aberto uma garrafinha com o seu crush ontem. Se não, amanhã já é sexta, #ficadica