Tudo pelo conforto térmico
Se for por um bom motivo como estar derretendo, ignorar as regras de harmonização pode ser a melhor saída
Quem me conhece sabe que harmonização é missão. Se alguém me convida para comer qualquer coisa e pede que eu leve uma bebida para acompanhar, eu sou capaz de mobilizar especialistas, pesquisar durante semanas, virar a internet do avesso. Pra mim, a louca aventura de fazer o melhor casamento de bebida com comida, de modo que nenhum dos dois se sobressaia mas que juntos formem um terceiro sabor, é uma das coisas mais legais do vinho, a primeira que eu entendi e o que mais me deixa apaixonada por essa bebida. Mas, hoje, decidi me trair.
Escrevo esse texto ao meio-dia do feriado da proclamação da República e os termômetros marcam 33 graus lá fora. Estou no único cômodo da casa onde há ar condicionado, mas em meia hora receberei amigos no quintal, onde provavelmente a sensação térmica é de 43º, que pode chegar a uns 50º depois que a churrasqueira estiver acesa. Nos últimos dias, virei um cachorro rabugento que só reclama do calor (e de tudo) e não consegue dormir.
Sempre ouvimos que as carnes que nós brasileiros gostamos de levar à brasa, picanha, chorizo e quetais, vão bem com tintos com taninos, que geralmente são encorpados como Cabernet Sauvignon ou Malbec. Mas como encará-los neste calor? Que espécie de harmonização sobrevive a um dia como esse?
Sinceramente? Nenhuma. Eu joguei a toalha. No meu freezer, neste momento, há três garrafas: um branco, um rosé e um espumante rosé. Parece um trio pra frutos do mar na plancha, né? E sim, eu disse free-zer. A turma mais WSET1000 do vinho vai me julgar, mas se bobear ainda vou usar técnicas de república (não a que celebramos nesta semana, mas a estudantil mesmo) e enrolar um papel-toalha molhado na garrafa antes de colocar pra gelar.
Nesses casos de desespero térmico, o conforto vale mais que a harmonização. E me dei conta de que o churrasquinho de quintal é a comida-evento de verão mais atingida com subversões desse tipo. No final das contas, para essa ocasião em que o encontro dos amigos é o prato principal, o vinho é mais uma música de fundo do que o protagonista. Melhor desencanar e não esquentar — se é que isso é possível.
Como gelar e manter a bebida na temperatura
Esses dias, pra ser feliz é preciso fazer um balde de gelo eficiente. Grifo a palavra porque a galera acha que é só encher o balde de gelo e pronto. Não é não. Tem que ter água pra que o gelo dissolva um pouco e a garrafa de vinho possa afundar nesse mar gelado. Se você quiser rapidez, além dessa eficiência, você gira a garrafa submersa, truque de sommelier profissional que eu aplico com alegria. Tem gente que coloca sal e álcool ainda, mas eu acho que se tem uma boa proporção de água e gelo, não precisa.
Outra dica óbvia mas que ninguém lembra é servir menos nas taças. Assim a bebida não fica ali esquentando e você pode sempre dar uma completada da garrafa que está geladinha no balde. E, claro, beber água o tempo todo pra evitar desidratação, bebedeira, ressaca, dor de cabeça e pensamentos obsessivos de “por-que-diabos-eu-bebi-tanto?”.
No podcast acima, tem mais dicas de serviço e de rótulos também.
3 garrafas para o próximo feriado
Entre os vinhos desarmonizados do meu churrasco está o elegante e festivo Hermann Espumante Bossa Brut Rosé N3, feito apenas com Pinot Noir da Serra Gaúcha, com nota forte de morango e acidez alta. Para quem quer ir de branco, o Bico Amarelo, do Esporão, é uma grande ideia, tem uma acidez deliciosa, notas bem frescas de frutas brancas e cítricas e é bem leve, no paladar e no bolso. E, nesse calor, tinto só se for levinho. O argentino Aqui Estamos Todos Locos Bequignol, com esse nome, cai bem com a o espírito da correria de fim de ano e deve ser tomado geladinho. Ele lembra uma cereja, tem acidez gostosa, não tem sobra de doçura e quase nada de doçura.
Hora de comprar
Essa época do ano é uma das melhores pra renovar o estoque e se preparar também pras festas do fim do ano. Lojas e importadoras de vinnho selecionam rótulos para vender com descontos reais e vale dar uma olhadinha pra ver se alguns dos seus vinhos do desejo não estão com um precinho mais camarada. O que está rolando agora é o esquenta, e muitas das importadoras já queimam na largada e já esgotaram tudo. Mas vale ficar atento até o fim do mês (a Belle Cave, por exemplo, só começa em 19/11). Já vi bons negócios na Wines4U, na Mistral, na World Wine, na Zahil (só em lojas físicas), na Grand Cru… Na Weinkeller, vale destacar o ótimo Riesling Pfaffman que vem na garrafa de um litro, é perfeito pra esse calor, e está pouco mais de R$ 100.
Já foi ao Goya Zushi?
Outro dia, provei uma pequena fatia de peixe. Não era fina nem grossa e, tadinha, era meio desbotada, veio em um pratinho sob outras duas de cor mais viva. Mas, quando entrou na minha boca, foi como se derretesse sobre a língua. Desconfiei que era, na verdade, um pedaço de quatro centímetros de manteiga que logo depois se desmanchou e deixou a minha boca coberta por uma camada de gordura. Não me aguentei e soltei a pergunta-exclamação óbvia:
“É manteiga!?”
”Deixa os franceses descobrirem”, respondeu o sous-chef, rindo do meu espanto.
Esse foi um dos momentos do meu jantar no Goya Zushi, que vai ser difícil esquecer. Foi uma noite diferente: no meio de um feriado, o balcão preparado pra receber dez pessoas recebeu apenas duas, meu acompanhante e eu. O chef Uilian Goya e os dois cozinheiros que trabalharam com ele naquela noite faziam um balé discreto, concentrado, sério e preciso diante de nós — e só para nós. A experiência acabou sendo rápida também: eles preparavam com agilidade, eu observava, recebia, comia quase tudo de uma bocada, e… próximo! As quinze etapas do omakase, o menu tradicional e sazonal japnoês, se desenrolaram em pouco mais de uma hora, o que foi realmente meio louco.
O que eu não vou esquecer:
1. Esse peixe manteiga, obviamente. Era parte de um trio de fatias de atum magro, intermediário e gordo maturado por 24 dias.
2. Como o arroz é cozido no ponto e é temperado com um vinagre envelhecido, que dá uma coloração marrom, além de deixar a acidez mais alta e equilibrar melhor ingredientes gordurosos que ele vai acompanhar. Faz um casamento ideal com os peixes supergordos e deliciosos que chegam ao balcão.
3. O delicadíssimo flan de ovos salgado, com pargo, vieira e ovas. Esse é covardia porque reúne as coisas que mais amo na vida. E a textura aqui, a leveza, o veludo que é esse flan é uma coisa de imaginar o que deve ser a comida do céu.
4. A técnica e a concentração de Uilian Goya, que consegue enrolar 200 mil ingredientes em uma alga. Você jura que não vai caber, que vai ser um desastre, e o cara te entrega um rolinho perfeito.
5. A sobremesa de matchá que encerra o menu repete a textura do flan, mas com uma coloração verde tão intensa e homogênea que parece uma pintura de laca japonesa.
6. Como o chef Goya é simpático e gentil. O restaurante estava um silêncio só, dois comensais apenas e cozinheiros profundamente concentrados que faziam também quase todo o serviço. Quando o menu terminou e batemos papo, a voz de barítono do chef, que primeiro me intimidou, nos deixou interessadíssimos ao contar sua história e um pouco da rotina. Incrível saber que começou há 20 anos fazendo bentôs na Mooca e que hoje, para servir o primeiro menu às 19h, o trabalho no restaurante começa às 10h, fazendo os primeiros caldos.
O Goya Zushi só serve omakase, só são dez lugares por jantar e há dois horários, 19h e 21h. Não é barato. Espero que seu aniversário esteja próximo pra você ter uma boa desculpa pra comer por lá. Por outro lado, se você acabou de completar uma nova idade, pode começar a colocar moeda no cofrinho pra ir no ano que vem.
Só mais um golinho
- Cadeira confortável no bar é tudo nessa vida.
Adorei e super de acordo! Se for um branco simplão largo no freezer até ficar licoroso de tão gelado, tô nem aí, rs. Depois que comecei a usar a "camisinha" da Le Creuset para vinho, a vida tb melhorou. Gela super rápido. Bjs!