Tem certeza que você vai abrir esse vinho hoje?
Quando saber o momento certo de abrir as garrafas? E, sem abri-las, como sabê-lo?
Há um mistério insondável rondando algumas das garrafas que tenho em casa. Qual a hora certa para abri-las? Certos vinhos pedem mais tempo na garrafa antes de ir à taça que outros. Alguns pedem anos, até décadas, para chegar no que ficou conhecido como “momento ótimo”, quase como se fosse o ponto ideal nas carnes.
Um desafio aqui é que, como nas carnes também, o ponto ideal para você pode não ser o ponto ideal para mim. As vezes que tive a oportunidade de fazer degustações verticais (quando provamos um mesmo vinho de diferentes safras) me mostraram que eu não exatamente amo vinho muito velho, de 25, 30 anos. Mas essas mesmas vezes me mostraram também que os grandes vinhos precisam de tempo. Na verdade, tem vinho que nem precisa ser tão grande assim, mas que pede descanso para ficar mais complexo, macio, agradável. Esses são os que o mundo do vinho charmosa e literalmente chama de “vinhos de guarda”.
Quando temos a paciência (e a sapiência) de esperar a hora certa, o vinho pode trazer mais informação e mostrar os chamados aromas terciários, que são notas de evolução no olfato e na boca. Alguns exemplos, nos tintos, são as notas de couro, de bosque, de terra molhada, de tabaco e as medicinais, onde antes só havia fruta vermelha. Já nos brancos podemos achar nozes, fumaça e mel, onde antes era apenas fruta ou flor.
Se abrimos uma garrafa antes da hora, podemos cometer o que a sommelière Alexandra Corvo, fundadora da escola Ciclo das Vinhas, chamou de infanticídio. Ela soltou essa ao provar um Vega Sicilia, um dos maiores espanhois, de menos de dez anos de idade. Era um vinho quase duro quando ela sabia que podia ser uma sinfonia de diferentes notas, conjungando primárias (as da fruta), secundárias (as da vinificação) e as terciárias (as do tempo).
Vale dizer que aqui falo desses vinhos mais especiais. Os baratinhos, melhor beber enquanto são jovens e têm fruta para dar e vender. Ah, e se forem baratos e brancos, melhor não ir além dos três anos desde a colheita.
Quanto aos vinhos de guarda, é claro que podemos consultar a internet, o site dos importadores trazem indicações de quando é melhor consumir, e especialmente os produtores falam sobre isso, além dos guias mais especializados. Mas eu sempre penso: e se esse povo aí gosta daqueles vinhos beeeeem evoluídos, quase cansados?
Já dei sorte algumas vezes. A minha história mais feliz aconteceu recentemente, quando tive uma ótima notícia e quis comemorar à altura. Escolhi menos pelo estilo (não tinha planos ou comida) e mais pela safra: 2010. Treze anos me parecia ok para um Chianti Clássico. Eu havia sido presenteada com o Fontodi Chianti Classico 2010 (a safra à venda hoje é a 2017) nos meus primeiros anos no mundo do vinho, no meu aniversário. O ano, provavelmente, era 2016. Então ele já estava comigo há sete anos e tinha 13 de vida. Acho que, sim, talvez ele pudesse esperar um pouco mais, mas naquele momento algo mágico aconteceu: eu abri o vinho para comemorar e comemorei que abri o vinho. Naquela garrafa, encontrei couro, cogumelo e terra molhada, e um tiquinho medicinal bem de leve. O vinho tinha uma cor vermelho acastanhado linda, estava finíssimo na boca, ainda cheio de acidez, redondo, um sonho. No final, ele me levou até ao fogão porque pedia shitake e eu, por sorte, tinha uma bandeja na geladeira. Os sites diziam que podia esperar mais, mas ainda bem que fui afoita porque tenho certeza que encontrei seu apogeu.
Uma história meio trágica (e já clássica) de vinho de guarda é a do Miles (Paul Giamatti), protagonista de “Sideways”. Ao saber que a ex-mulher, com quem tinha comprado um Château Cheval Blanc 1961 para uma “ocasião especial”, está grávida de outro alguém, o coitado corre para o apartamento, pega a garrafa no fundo do armário, leva a uma lanchonete meio podrona e bebe em copo de 500 ml de isopor enquanto mastiga um hambúrguer triste e onion rings inflados. Teria ele assassinado aquele vinho? Seria uma busca por prazer fugaz num momento de tanta dor? Talvez fosse apenas o fechamento de uma história, uma fase da vida que precisava de um ponto final.
Mas o momento de sabedoria envolvendo essa garrafa acontece mais cedo no filme, quando Miles conta a Maya (Virginia Madsen), a pretendente que ele está desajeitadamente tentando conquistar, sobre o tal vinho incrível que ele comprou para uma ocasião especial. E Maya diz: “Se você tem um Château Cheval Blanc 1961, a ocasião especial é abri-lo”.
Garrafa da semana
Finalmente uma pechincha! Qual não foi a minha surpresa ao checar o preço do Cartuxa Monte dos Pinheiros, um vinho adorável que um amigo trouxe para o almoço de domingo? Comíamos um cabrito com baião-de-dois, e eu achei por bem furar a fila das garrafas trazidas para dar vez a um vinho regional alentejano feito pela Cartuxa. Para quem não sabe, é uma marca da Fundação Eugénio de Almeida que produz o famigerado Pêra Manca, assinado pelo mesmo enólogo. Só que ao custo de R$ 50-70 a depender da loja, enquanto o irmão mais famoso passa dos R$ 2,5 mil. Ele é feito com castas alentejanas (Aragonez, Trincadeira, Alicante Boushcez) aliadas à Syrah, que vai muito bem por ali e dá um toque spicy à tanta fruta. É macio e volumoso, tem taninos macios, alegra e satisfaz. É o que chamo de delicinha.
No céu tem este pão
Sou muito fã da Fabrique desde sempre e fiel à baguette e ao Miche, receita mais célebre da casa. Mas neste fim de semana o mesmo amigo do Cartuxa me trouxe um pão grande e de formato curioso chamado Charpentier e eu pirei em como podia ser tão leve e aerado e de casquinha tão crocante. Fica a dica aí pra quem é esperto.
Já foi no Cantón?



Fui ao meu primeiro restaurante de cozinha chifa na semana passada. Chifa não é a mistura do Brasil com o Egito, mas a do Peru com a China e nasceu mais ou menos na década de 1930, fruto da imigração chinesa em terras peruanas. O Cantón virou um restaurante de rede; de tão certo que deu, o que começou como uma dark kitchen na pandamia, abriu outras unidades e cresceu. Isso pode fazer você torcer o nariz, mas duvido que encontre um lugar mais legal para comer mil dumplings e baos e buns e tomar cerveja cusqueña antes de ir a um show no Sesc Pompéia. Vale dizer que esses sandubinhas e bolinhos são todos deliciosos, super bem feitos, chegam à mesa fumegantes e no auge. Provei também um bom filé com pimenta sichuan e arroz frito, mas talvez tivesse ficado até mais feliz se tivesse pedido mais da seção de entradas. Ah,palmas para o ceviche cantonês, com atum e molho hoisin, aquele mesmo do pato de Pequim (que também tem lá, entre as entradas, mas vai ficar pra outro dia). A coisa boa de ser rede é que não precisa estar na Pompéia; em diferentes partes do Rio ou em Moema, em São Paulo, também dá para provar essas entradinhas.
Só mais um golinho
- Talvez a dor que eu sinta quando abro uma garrafa triste e o bolso está vazio tenha sido traduzida pelo bebiodicionario
minha tragédia enológica: romanée-conti 1987 generosamente oferecido por uma camarada. o sommelier abriu a rolha claramente ressecada sem perder a pose, fez as honras, girou na taça, olhou, cheirou e resumiu a catástrofe: "notas de sela molhada".
Na falta de garrafas, abri mesmo o teu e-mail e me deliciei! Que leitura prazerosa, puxa vida! Tim-tim!