Provar uma gota divina
A vinícola biodinâmica de Bordeaux que é peça-chave da série queridinha do momento sobre vinhos



Tenho sofrido de um probleminha de chatice. Explico: comecei a assistir a duas das séries de ficção de comida e bebida queridinhas do momento e elas não me pegaram nada. Mais que isso, fico num misto de perplexidade (“por que vocês têm falado tanto disso?”) com masoquismo (“vou assistir a isso um pouco mais porque vai que bate”). Por enquanto não bateu, mas uma coisa engraçada aconteceu. E tem relação justamente com a série com que fui mais negligente que masoquista, “Gotas Divinas”, abandonada no terceiro episódio.
Se você ainda não assistiu, eu faço aqui um breve resumo: é uma série da Apple+ baseada na série de mangás “Drops of God” e que conta a história da herança do maior colecionador de vinhos do Japão (e talvez do mundo), um francês, que ao morrer deixa instruções para uma competição entre sua filha, apartada do vinho por uma doença misteriosa que a faz sangrar quando prova qualquer bebida alcoólica, e seu pupilo, um grande nerd do vinho. Os dois têm que degustar bebidas incríveis às cegas e dizer o que são. Entre as vinícolas protagonistas, está o Château Le Puy, de Bordeaux.
A vinícola é um ponto fora da curva da subregião da Margem Direita, conhecida por grandes châteaux e vinhos icônicos como Cheval Blanc (Saint-Émilion) e Petrus (Pomerol). Apesar de ter 400 de anos de história nas mãos da mesma família, é mais discreta do que as vizinhas e segue a filosofia biodinâmica, que não é exatamente comum em Bordeaux. O perfil do vinho também difere de seus vizinhos, com sua acidez brilhante que se sobressai e equilibra até os níveis de álcool mais generosos dos últimos anos. Seu vinho principal e que leva o nome da casa é elaborado com Merlot (com mais de 80% do blend) Cabernet Sauvignon e Carménère. A madeira é comedida, com um primeiro estágio de 12 meses em grandes barris de 5 mil litros e um segundo em barricas usadas por mais um ano.
Em entrevista a Eric Asimov, crítico do New York Times, o patriarca Jean Pierre Amoreau lista as três características importantes de um bom vinho: deve ser refrescante, o primeiro gole tem que causar boa impressão, e finalmente tem que ser de fácil digestão. Não é difícil concordar com ele e, claro, notar a simplicidade e o caráter direto de suas palavras, sem os floreios que se espera das grandes marcas.
No meu terceiro ano profissional de vinho, fui chamada a participar de uma degustação vertical do Château Le Puy, que no Brasil é importado pela La Pastina. Como não se pode ter tudo nesta vida, eu não pude ir (era fechamento, ou havia criança doente, ou eu estava em qualquer outro tipo de apuro) e amarguei essa renúncia por alguns anos. Até esta última segunda-feira.
Quais as chances de você sentar em uma mesa de restaurante numa segunda-feira à noite e ficar melhor-amiga-de-infância do cara da mesa ao lado? Quais as chances desse cara ser um francês fazendo uma degustação de rótulos incríveis? Quais as chances desse cara ser enólogo associado e sócio do Le Puy? Quais as chances de ele te oferecer uma taça? Milagres acontecem vez ou outra sim.
Eu, do alto da minha cara de pau, resolvi puxar assunto, curiosa pela reação dele ao provar um vinho depois de afirmar com veemência que desprezava a uva do qual era feito. Ele começou a falar sobre como era bonito se surpreender com uma garrafa e como os vinhos podem ser emocionais ou técnicos e que ele prefere a primeira categoria e que é isso o que busca lá, na sua vinícola. (Até aí eu não sabia qual era.) “Gosto dos vinhos naturais mais pela emoção mais que pela política. Gosto de como os vinhos conseguem criar conexões. (…) O que não queremos é que o casal que abre uma garrafa se frustre com tantos defeitos. Queremos que eles tenham prazer, se amem e não acordem no dia seguinte arrasados. Tendências somem, as coisas boas ficam”, me disse Harold Anglais, meu novo bff de aproximadamente 4 minutos de amizade, sobre os vinhos naturais.
E continuou: “Às vezes um homem tem um nariz enorme, uns dentes esquisitos, mas o conjunto é harmonioso. Pode haver certas ‘irregularidades’ em um vinho natural, mas o conjunto ser único e cheio de energia”. Concordo. Mas sobre os dentes esquisitos, já não sei.
Conversa vai, conversa vem, “fazemos vinho de identidade” pra cá, “não vamos usar uvas portuguesas ou híbridas num contexto de aquecimento global” pra lá, ele diz que precisamos “voltar à essência do vinho” e “simplificar a bebida”.
Daí eu finalmente entendo que é Château Le Puy. Conto que nunca provei, perdi a degustação, mas sei que não é nada barato no Brasil (R$ 589 o Emilien 2018 na World Wine), daí fica um pouco mais difícil essa simplificação. Ele diz que entende, lamenta, e fala que eu preciso provar. Diz também que querem ser reconhecidos, e não famosos. Mas é aí que o bicho deve ter pegado: como foi então para vocês “Drops of God”?
Ele me conta que, do dia para a noite, havia mais de 200 japoneses na porta da vinícola. E que havia pedidos e mais pedidos do Japão por caixas da safra 2003. Eles não sabiam o que fazer ou como lidar com a “crise” até descobrirem que se tratava de um mangá que citava seu vinho como um dos grandes do mundo. E eles não tinham ideia do porquê desse vinho ter sido escolhido para ser peça tão fundamental da história. Anos depois, quando encontrou o autor Shin Kibayashi, ele o lembrou que havia sido recebido na propriedade com muita gentileza mesmo sem ter hora marcada. Ficou por cinco horas no local e fez uma longa degustação. Taí uma conexão do vinho.
Minha taça enfim chegou. Eu precisava dirigir, então realmente a minha gota divina foi meio que uma gota mesmo, não dava pra me esbaldar em uma taça inteira. Estava quente, eu estava exausta depois de horas de papo em português e francês, portanto não consegui fazer uma degustação técnica. Mas consegui identificar o que quer dizer a palavra elegância ali. E vi que esse primeiro encontro com o Le Puy foi suficiente para sentir sua energia e como este vinho é também uma ponte para boas conexões. Foi rápido, quase um flash que me fez virar a cabeça para entender melhor o que estava acontecendo. Sigo refletindo aqui e agora espero a oportunidade de uma segunda taça. Enquanto isso, masoquismo ou não, vou voltar ao quarto episódio de “Drops of God”.
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E, para quem não entendeu, a segunda série é “The Bear”. Se você ama, me conta por quê?
Garrafa da semana
Alemanha e Áustria são dois países que costumam me deixar feliz com suas garrafas. E a vinícola Meinklang me deixou louca da Silva com dois rótulos. Infelizmente, o primeiro que provei, um Grüner Veltliner defumadinho, com nota empireumática e um discreto floral, está esgotado. Vale visitar o site da importadora Uva e selecionar o botão avise-me para ser alertado sobre seu retorno e também comprar o laranja Weisser Mulatschak, que é um corte de Traminer, Pinot Gris e Welschriesling. É uma escolha mais ousada, para quem é aventureiro, já que é menos elegante que o Grüner. Por outro lado, é mais complexo, com notas bem frescas de casca de laranja bahia, mas notas da fermentação ainda bem presentes, além de uma salinidade delícia demais na boca. Tem corpo médio e um volume bom, acompanha bem pratos de média intensidade, e é versátil para aquelas mesas variadas de pequenos pratos para compartilhar — acho que pratos árabes serão um deslumbre aqui. Com a estrutura que tem, é um desperdício não casá-lo com comida.
Fermente você mesmo
Se você ainda não provou as maravilhas do Companhia dos Fermentados, corra, porque tem muita coisa legal. Mas eles também nos encorajam a fermentar nós mesmos, têm inclusive livros que ensinam tudo. Aqui neste post eles ensinam como fazer uma bebida de caju e rapadura. Fiquei com vontade de tomar isso no café da manhã do domingo.
Comida e memória
O poder da comida de evocar memórias não é exatamente novo, todo mundo tem memórias da infância de comidas que são significativas e que estão em um canto especial do cérebro. Mas este texto da New Yorker fala dessa relação de maneira mais direta, em como refeições são construídas para pacientes com demência recuperarem as lembranças perdidas pela doença, ainda que momentâneamente. Fiquei pensando no enorme ato de amor e cuidado que esse tipo de tratamento envolve.
Já foi no Avinha?



Um bar com cara de casa. Poderia ser a sua casa, você abriu o quintal ou a varanda para os amigos. Mas quem abriu foi a Renata Figo, que serve vinhos em taça e garrafa, além de empanadas feitas na hora (e os sabores variam) e frios. Na segunda, ela faz uma xepa e as taças saem a R$ 19, mas mesmo nos dias nobres (fim de semana) elas começam em R$ 23 e as garrafas em R$ 115. Neste mês, de aniversário de um ano do bar, ela dá 10% de desconto. Fui com dois amigos na segunda e dividimos cinco taças, paguei módicos R$ 39. Quem mora em São Paulo sabe o que isso significa. O meu favorito foi um argentino branco, um blend de uva Criolla, chamado Inmemorial. De corpo médio e não filtrado, trazia nota floral e cosmética (!). Sabe batom cheiroso? Pois. Provei os mais ligeiros, mas fiquei com vontade de voltar no sábado e provar coisa mais séria.
Uns docinhos e um último golinho
- Fiquie pensando que este Shakshuka da Bel Coelho é perfeito para acompanhar uma mimosa neste fim de semana. Minha dica é não gastar demais no espumante para este drink, mas prefira sempre os brut, que suco de laranja já tem açúcar demais.
- Esta receita de torta de ameixa faz 40 anos e continua sendo um grande sucesso do New York Times. Está fechada no Cooking, mas aberta no Food52. Já pra ela iria num espumante Moscatel.
Dale Bellita! Leio sorrindo esta newsletter!
Você cita reportagem sobre memória e comida. E recomenda o Inmemorial. E eis que rememora o desmemoriado aqui: acho que já tomei (e amei) esse vino. Escrevi Inmemorial na busca do celular e plim! A memória assombrosa do iphone achou uma foto de 24 de janeiro. Foi num feliz jantar, só com minha mãe, em memória da minha memorabilíssima avó.
Das boas conexões do vinho. Besos atacameños