Os vinhos de um jardim secreto
Um dos franceses mais renomados em atuação em Bordeaux, que comanda duas célebres vinícolas, também faz a bebida em casa
Quando conto que sou uma jornalista especializada em vinhos, a primeira reação de algumas pessoas é pensar na sorte de provar diferentes rótulos, bebidas produzidas em diferentes partes do mundo, raras, outras caríssimas. Mas ninguém se liga muito nos personagens deste universo. Nesta semana, na Folha, publiquei uma coluna sobre um projeto de vinícola no interior de São Paulo, a Casa Tés, que foi fundada por um advogado apaixonado por vinho, o Pedro Testa. Ele está sendo auxiliado nos blends por alguns amigos. Entre eles está um francês que o advogado define como o “Pelé dos vinhos”. Se você já tem certa litragem e gosta de ler sobre o assunto, já sabe de quem eu estou falando. Se não, vai adorar conhecer o Pierre Lurton.
No seu cartão de visitas, ele aparece como o responsável por alguns dos maiores ícones de Bordeaux, os célebres e luxuosos Château d'Yquem e Château Cheval Blanc, onde trabalha desde 1991. É também de uma família célebre de vitivinicultores e, aos 23, já era tido como prodígio e tinha sob seus cuidados um clos em Saint-Émilion. Numa escala de 0 a 10 de chiqueza, isso significa ocupar a posição 11.
(Outro fato importante dessa biografia: Lurton tem uma relação superpróxima com o Brasil, porque é casado com a jornalista brasileira Alexandra Forbes, e vem bastante ao país. )
Só que além desses vinhos importantíssimos, ele faz também rótulos de um projeto pessoal no seu “jardim secreto”, que é como chama os vinhedos arrendados ao lado da sua casa, quase no seu quintal, numa parcela em Entre-deux-Mers, a 10 quilômetros de Saint-Émilion. Ele e Alexandra cuidam desde 2018 dessa produção, que gera vinhos assinados pelo enólogo e diretor técnico Jean-Marc Domme.
Esses vinhos, os Château Marjosse, chegam ao Brasil pela Mistral. A produção é bastante limitada, mas é diversa, tem coisa rara e de vinhas antigas, algumas com mais de 100 anos de idade. Para a crítica Jancis Robinson, é "um dos maiores achados de Bordeaux dos últimos tempos" — e quem sou eu pra discordar dela?
Quando estava no Estadão, em 2017, Lurton me disse em uma entrevista: “Eu comando as duas grandes empresas como CEO, e dou a elas toda a minha atenção. Mas, em Marjosse, eu posso pôr a mão no vinho”, afirma. Segundo ele, o malabarismo é possível pela proximidade das vinícolas. “Tomo café em uma, almoço em outra e janto na terceira. É um trabalho bastante calórico.”
No ano passado, provei alguns dos vinhos de Alexandra e Pierre num jantar promovido pela Mistral. O Château Marjosse Blanc 2021 é um corte de Sémillon, Sauvignon Blanc, Sauvignon Gris e Muscadelle, que lembra pêra, fruta e flor brancas e tem o menor preço de todos. O tinto, que eu provei lá, era fresco e redondo e tinha uma adstringência nas alturas. As notas eram de cassis e um pouco de menta. Depois deles, há uma linha chamada Anthologie, com quatro rótulos muito interessantes. Meus destaques vão para o Anthologie de Marjosse Cuvée Hidronelle 2020, que é uma raridade, por ser feito com uma uva vista como “tempero” em Bordeaux e de vinhas com mais de 75 anos. São menos de 200 caixas por ano desse vinho, que já foi premiado com a Coup de Coeur, prêmio da Revue du Vin de France. É elegante, mineral e discreto nos aromas. Entre os tintos, pirei no Anthologie de Marjosse Cuvée Les Truffiers 2018, um 100% Merlot de terroir calcário, super voluptuoso e concentrado, uma deliciosa geleia de fruta preta.
Terroir roça
Se você ficou curioso para saber mais da vinícola paulista Casa Tés, que tem a amizade de Pierre Lurton, aqui vai um trecho da coluna da Folha:
[São] sete hectares de videiras plantadas entre 950 metros e 1.000 metros de altitude, o que já é bastante interessante para a viticultura (para se ter uma ideia, o vinhedo Adrianna, considerado o "grand cru" da Catena Zapata, está situado a uma altitude de 1.500 metros no Vale de Uco, em Mendoza).
Mais que isso, chama a atenção o solo do lugar. A região, que abrange 11 municípios paulistas e mineiros, está na zona central de um maciço vulcânico que esteve em atividade há mais de 100 milhões de anos. Para o vinho, "terra vulcânica" é senha para algo interessante, como nos atestam os sicilianos da região do Etna, um "must" no mundo do vinho hoje. Esse tipo de solo oferece mais minerais e excelente drenagem para as raízes das vinhas.
O melhor da humanidade nos piores momentos
Na útlima semana, na Gama, contei a história de como o chef José Andrés fundou a World Central Kitchen. Ouvi uma entrevista dele no podcast WTF, do humorista Marc Maron, e fiquei impressionada com suas ideias e seu trabalho humanitário. No começo de abril, foi sua organização que perdeu sete integrantes que distribuiam alimentos em Gaza. O artigo que Andrés publicou no NYT é emocionante e triste demais.
Beethoven surdo de tanto vinho ruim
Você já ouviu falar que a gente tem que beber vinho bom porque a vida é muito curta pra gastar em vinho ruim? Mas pode ser que tenha motivos ainda mais importantes pra beber bem. Esse texto publicado no NYT e traduzido na Folha diz que Beethoven pode ter ficado surdo de tanto chumbo em vinho meia-boca que ele sorvia.
Degustação com Manoel Beato + Le Cordon Bleu
Uma degustação guiada pelo sommelier-chefe do Fasano, Manoel Beato, com música ao vivo é uma das atrações do Festival Cordon Bleu e Tucca, união da escola francesa com a associação que oferece tratamento para crianças de baixa renda com câncer. Há uma programação de aulas de massas, pães e doces, há outras degustações como a de comida de izakaya e drinks com saquê, e uma feirinha. No próximo fim de semana (18 e 19/5), na Cordon Bleu, em São Paulo. Ingressos aqui.
Gelo e Gim, o curso
Daniel de Mesquita Benevides, jornalista e colunista de coqueteis da Folha, vai ministrar o curso “Viagem pelo Mundo dos Coquetéis”, com as histórias e curiosidades por trás de drinks clássicos como Dry Martini, Manhattan, Caipirinha, Margarita e French 75, o carro-chefe do Rick’s bar em Casablanca. Ele dá receitas e macetes. De 21/05 a 18/06, às terças, das 18h30 às 20h, na Mercearia do Conde, em SP. Infos e inscrições no (11) 97313-5041.
Só mais um golinho
O Marjosse branco eu não conheço, o tinto é um bom vinho mas não muito mais que um Bordeaux mediano. É uma situação semelhante a do Don Melchor, um blend de 70% uvas e 30% marketing.