Onde está a crítica gastronômica?
Prática em declínio, na cozinha ela vem sendo soterrada pela falta de estrutura dos veículos e pela ascensão de influencers que geram conteúdo como se não houvesse amanhã. E haverá?
Se você ainda não ouviu o podcast da atriz Julia Louis-Dreyfus, por favor, faça-se o favor. “Wiser Than Me” nem é mais assunto novo e a entrevista mais compartilhada e que traz mais ensinamentos pra vida, sem dúvida, é a da Isabel Allende, que parece um oráculo. Você escuta e pensa: essa mulher realmente entendeu a vida. Mas o episódio que mais recomendo é o da grande Ruth Reichl.
Se você ainda não a conhece, faço as apresentações: Ruth é autora de gastronomia, publicou livros maravilhosos como “Alho e Safiras” (Objetiva, 2006) e “Conforte-me com Maçãs” (idem, 2003). Para encontrá-los hoje, dá-lhe estante virtual, mas dizem as boas línguas que serão reeditados pela Companhia de Mesa.
Ela chegou a ser uma crítica bem importante no New York Times, dessas que usa disfarce para não ser reconhecida. Quando ia com sua fantasia de velhinha, as piores coisas aconteciam a ela. Depois, chegava com a cara que tem e era tratada como rainha.
Muito se fala na morte da crítica. Não só da gastronomia, mas do cinema: se influencers com milhares de seguidores recebem benesses dos estúdios para falar bem dos filmes, produzindo conteúdo rápido e de fácil digestão, como ficam os críticos?
Desse nosso lado do guichê, digo que hoje é difícil fazer crítica gastronômica no Brasil porque ela é cara e boa parte dos jornalistas especializados não são nem contratados dos grandes veículos (ainda há grandes veículos?). Eu integrei a equipe do Paladar, editoria de gastronomia do jornal O Estado de S. Paulo, há menos de dez anos. Naquela época os influencers ainda não tinham dominado tudo e o jornal ainda pagava as contas dos críticos.
O crítico de gastronomia José Orenstein, que não estampava foto em sua coluna Ao Ponto (que infelizmente não está mais disponível no portal do jornal), visitava cada restaurante pelo menos três vezes para fazer um texto. Ia só ou acompanhado e o jornal pagava a conta. Muitas vezes, eu o acompanhei e, além de vê-lo em ação, aprontei. Devolvi prato que tava ruim — era pra ser carbonara, chegou omelete. Mas ficou provado que até um revés desses pode ser compensado por um bom serviço: o garçom, atencioso, sugeriu outro prato, mais caro, e não cobrou nada. O texto do meu colega sublinhou a gentileza e o restaurante saiu bem na fita. Outra vez, tivemos crise de riso ao ver a aparência hospitalar de um prato clássico dos anos 1960 ressucitada em uma reabertura infeliz de restaurante igualmente clássico dos anos 1960. Esse não teve jeito: a tragicomédia foi relatada com a fidelidade que a função do crítico exige.
Eu amo comida e bebida e já escrevo regularmente sobre o tema há oito anos. Mas não sou crítica, apesar de ter muita opinião. Pra começar, não é sempre que consigo pagar porque, infelizmente, minha conta bancária não acompanhou a evolução do meu paladar. Recebo convites e algumas das indicações saem deles; outras não, saem do meu bolso mesmo porque eu também dou meus pulos. O chato é que me sobra a dúvida: se ninguém soubesse que eu sou eu, seria tão bom assim?
O convite também causa desconforto quando o lugar decepciona. Mas depois de uns anos entendi qual era o meu código de ética: se não é bom, se não gostei, não recomendo. E, olha, muita, mas muita coisa que provo não entra aqui ou em outros textos que publico na Gama e em outros lugares onde já trabalhei porque, simplesmente, não acho que valha a pena.
Mas a Ruth tem outro método e ele é lindo e inspirador: ela guarda uma foto de um jovem casal desconhecido no mural ao lado do computador dela, na mesa de trabalho. É um jovem casal, ela imagina, sem muito dinheiro, que economizou durante meses para ir a um restaurante comemorar o aniversário de um dos dois. Para eles, é um sonho e também um sacrifício ir comer fora. E é com eles na cabeça que ela escreve os textos com a maior sinceridade de que é capaz.
Garrafa da Semana
Tou ruim demais de garrafa da semana porque fico rodando em falso nos vinhos brancos, que são os melhores para esses dias de eterno verão. Mas um tinto muito simpático e com muita cereja me deixou animada esses dias, o Bel Colle Barbera D’Asti 2021. É desses vinhos para abrir quando finalmente chegou o momento do sextou mais suave e você não vai aprontar mais que uma massa ou uma pizza. Ai, já pensei na Margherita da Pizza da Mooca, sabe? Casamento feito no céu. Ele é equilibrado, tem acidez boa, agrada todo mundo, e tem o charme de vir do Piemonte. Tá por R$ 115 na importadora Decanter, mas você vai achar que pagou mais caro.
Menu de primavera
Não consegui ir ainda ao Più, mas tá rolando um lindo menu primavera que me deixou com água na boca: tem sopa de tomate com morango, tortelli recheado com queijo de cabra Cabriola, carpaccio de rosbife no carvão. Babei numa pera com calda de fava de baunilha que vi no Instagram deles.



Outra pera, agora com gengibre
Daí vi essa outra que tem receita no Cooking. A fruta é cozida com açafrão e gengibre e tem uma baldinha apetitosa. Vale testar.
Dieta da semana
Esse regime circulou a internet na semana e é maravilhoso porque sugere Chablis no café da manhã. Eu totalmente adotaria. Só discordo da harmonização com ovo cozido. Primeiro porque ovo duro só pra virar saladinha com azeite e mostarda dijon. Segundo, porque todo mundo sabe que ovo é inimigo do vinho e eu não arriscaria meu Chablis com ele.
Profecia audiófila
Depois do Domo, do Elevado Conselheiro, é a vez do Matiz bar. É ou não é a vez dos bares de áudio, meus amigos?
Já foi no Caledonia?



Nunca, nunca, nunca pensei que fosse ser tão feliz em um bar cujo principal atrativo é o uísque. Se o vinho sofre para rejuvenescer, o que dirá desse titã escocês (ou irlandês, ou norte-americano, ou mesmo japonês!)? Pois neste bar chamado Caledonia, em Pinheiros (zona oeste de São Paulo), ele pode ser jovem e versátil, casando com outros destilados, vinhos, licores, bitters, cítricos e toda sorte de ingredientes que vão até a manteiga de garrafa. Isso mesmo, tem uma coisa chamada fat wash, que é uma infusão dos dois líquidos por 24 horas que deixa a bebida láctea e gorda de um jeito muito louco. Foi essa técnica que me foi apresentado no primeiro coquetel que provei ali, chamado de King James, que além do Irish Whiskey e banho de manteiga de garrafa com amêndoas, trazia um blend de Jerez Pedro Ximenes, Vermute de Jerez, vinho da Madeira, queijo grana padano, jamón ibérico e cocoa bitters. Coisa pra caramba, complicado pra caramba, delicioso pra caramba. Por sugestão do chef de bar, Alison Oliveira, foi servido com uma torrada perfeita com coalhada de ovelha e um dos gravlax mais lindos que já vi na vida com um gelatinoso e marítimo wakame por cima. Foi tão maravilhoso e o casamento tão perfeito que eu resolvi apenas acatar todas as sugestões. Entre as comidas, teve boudin de New Orleans (bolinho de linguiça picante com arroz frito e empanado), bolovo inglês, torrada de steak tartare e até um hambúrguer criminoso de tão gordo e salgado. Parece ruim, né? Só que ele acompanhou um sour chamado black Beelzebob #2, que traz bourbon, scotch, amaro, xarope de amêndoa e limão siciliano e limpava a boca e pedia por mais. Sete coqueteis (sete!!!) e eu tive um total de zero ressaca. A comida não é leve, pelo contrário, mas é muito, mas muito bem feita e casa bem com cada um dos drinques, que vão de R$ 35 a R$ 70, a depender do nível de elaboração (que pode ser altíssimo) e dos ingredientes (que podem ser raros). Dá até pra transformar sua saideira em um tipo de cafezinho mais animado, como fiz na foto acima. Se tiver chance, sente no balcão e pergunte tudo. Vale dizer que um dos sócios do bar é o Maurício Porto, autor do excelente O Cão Engarrafado, uma das melhores leituras sobre uísque no Brasil. Coisa fina.
Só mais um golinho
- O escritor Antonio Prata me mandou esse e me alertou: “É Merlot beber mais tarde”.
Um outro elemento para se levar em conta: como um bom pessoal parece gostar mais de propaganda cheia de oba oba do que de crítica.
Hahah, esse carbonara inesquecível!