O dia em que fui cobaia da Catena
Como fui parte de um experimento e levei uma rasteira dos meus próprios sentidos
Nesta semana, fui cobaia. A vinícola argentina Catena Zapata, uma das mais relevantes do país vizinho e que investe pesado em pesquisa, está investigando a capacidade de envelhecimento de seus vinhos em colaboração com a Universidade da Califórnia em Davis. O estudo envolve 1. prever a capacidade de envelhecimento da bebida; 2. comparar os paladares de especialistas (as cobaias) de cinco países (Argentina, Brasil, China, EUA e Inglaterra) para vinhos envelhecidos; 3. avaliar 14 rótulos Catena e Catena Zapata entre brancos e tintos de várias safras. A convite da Mistral, importadora que traz os vinhos da Catena ao Brasil, me juntei ao grupo de 20 cobaias brasileiras.
Cheguei ao hotel Tivoli no horário combinado sem saber exatamente o que iria acontecer e fui encaminhada para a minha suíte, com uma cama enorme e maravilhosa que convidava ao cochilo mas que teve que ser solenemente ignorada. Na bancada que funciona como mesa de escritório, estavam organizados os 14 rótulos de vinho, quatro brancos e dez tintos, ao lado de lenços e guardanapos, um cesto de pão, uma cuspideira, latas de água num baldinho de gelo e um tablet. Coisa realmente impecável. O cronômetro seria ligado, eu deveria ler as instruções e, sem enrolar, começar a prova.


Era preciso responder o quanto eu apreciei cada um dos vinhos (nove níveis entre “detestei” até “achei excelente”), opinar sobre o ponto de evolução (se estava no momento ideal para beber, se já passou ou se chegará em dois, cinco ou mais de dez anos), e fazer uma pequena descrição do vinho em no mínimo quatro palavras. Isso porque um dos objetivos da pesquisa é entender os descritores de vinhos envelhecidos.
Quando o relógio começou a correr e eu me armei da primeira taça com um líquido dourado de tonalidade intensa, me apaixonei. Acho que gosto mais dos brancos evoluídos do que dos tintos. Tinto, pra mim, tem uma hora que passa e vira remédio. Quando o aroma de fruta vai embora e chegam notas de couro, até cogumelo, eu acho lindão. Mas passou disso só penso em biotônico e aí eu tenho vontade de chorar — de tristeza.
Mas esse branco era uma coisa mel, damasco, amêndoa. Uma belezura. Depois dele, veio um vinho clarinho, jovenzito, que tava esquisito demais. Comecei a achar que podia ser meu skincare (e olha que não uso nada com cheiro quando vou degustar): talvez tivesse errado ao passar a niamicida no rosto. Fui ao banheiro, perdi uns segundos lavando a boca e voltei ao vinho. Ainda esquisito. Não curti. Fui ao terceiro: pior, água de azeitona, acético, amargo. Testei o pão: sabor de cêra. Hmmm, tá difícil isso, hein? Será que meu paladar bugou justo naquele momento? Pausa, respira, volta. Voltei ao vinho: amargor puro. Vixe, paciência, passei para o seguinte, o quarto: de novo evolução, doçura, mel, damasco, etc. Que coisa esquisita, como podem os evoluídos estarem tão bons e os jovens não? Ainda mais sendo brancos?
Fui aos tintos. Que alegria! Os muito jovens transbordavam fruta e adstringência e respondi que ainda chegariam ao apogeu, o tempo os amaciaria. Alguns já estavam finos, com a fruta vermelha ainda bem ácida. Os que secavam a boca, mesmo assim, traziam prazer e era fácil ver que o ápice seria alto. Alguns dos mais antigos traziam a beleza das notas de couro, cogumelo e chocolate. Outros eram o puro armário de remédio. Not my cup of wine.



Dois minutos antes do fim do tempo, encerrei minha missão e desci ao lobby do hotel para conhecer a verdade sobre aqueles rótulos. Meu maior choque foi saber que o vinho que DETESTEI era o incrível, delicioso, caríssimo e premiadíssimo Adrianna Vineyard White Bones 2014, um Chardonnay de altitude de qualidade indubitável que eu já tinha provado mais de uma vez. E, veja, nem era tão jovem assim. O que explicaria então meu desprazer? Me senti confusa e traída pelo meu paladar. Mas a hipótese levantada por uma colega cobaia me acalmou: talvez o problema tenha sido causado pela sequência, pois ele veio logo após um vinho super-hiper-mega-blaster evoluído e muito exuberante, com muita doçura. White Bones é a tradução argentina da mineralidade, por contraste. Isso fez com que sua acidez tenha sido ressaltada, dando uma sensação de desequilíbrio, o que o deixou desagradável.
Já com os rótulos às vistas, nós, as cobaias, podíamos degustar o que quiséssemos para tirar a prova. Voltei ao White Bones, e adivinha? Estava ótimo. Mais do que me ensinar sobre evolução, a experiência me mostrou que a ordem dos vinhos pode alterar os fatores da apreciação.
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Se você ficou curioso para saber os rótulos degustados, eles eram, nesta ordem:
Catena Chardonnay 1999
Angelica Zapata Chardonnay 2021
Adrianna Vineyard White Bones 2014
Angelica Zapata Chardonnay 2008
Catena Zapata Malbec Argentino 2022
Angelica Zapata Malbec 1995
Catena Zapata Malbec Argentino 2004
Catena Malbec 2022
Adrianna Vineyard River Malbec 2012
Nicolás Catena Zapata 2020
Catena Cabernet Sauvignon 1990
Nicolás Catena Zapata 2000
Nicolás Catena Zapata 2016
Catena Malbec 1994
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O Intituto Catena é o xodó de Laura Catena, filha do fundador Nicolás, médica e produtora. Sou sua admiradora pela importância que dá à pesquisa científica na produção do vinho. Conversei longamente com ela em 2019 e publiquei uma coluna na Gama sobre a sua importância para o vinho argentino, especialmente por ser mulher nesse universo tão machista.
Garrafa da Semana
Escrevo essa recomendação ainda sob o efeito da alegria de ter provado o Chionetti 2021 Dolcetto Dogliani DOCG BIO Briccolero, numa degustação promovida pela importadora Tanyno (que vende por televendas). Alegria mesmo foi saber que ele é aquela delicinha toda e custa R$ 115. Como características mais marcantes tem uma cereja bem madura nas notas olfativa e gustativa, e uma textura marcada mas fina na boca. Com uma adstringência perfeita para uma mesa farta, esse vinho me parece um achado daqueles, capaz de impressionar e satisfazer quem gosta de comer e beber bem.
Vinho como souvenir de viagem
Na última semana na Folha, escrevi sobre como levar uma garrafa de vinho de um lugar que se visita é um jeito de ter um souvenir sensorial de férias felizes. Mas que terror que é enfiar tudo em uma mala de até 23 kgs. Eu passei por maus bocados, mas ouvi relatos interessantes como a dica do Rodrigo Casarin, do Página Cinco: “Uso garrafas de plástico vazias. Depois de embrulhar o vinho nas roupas velhas, colocá-los numa espécie de ninho no centro da mala e amarrá-los bem, distribuo as garrafas de água vazias e tampadas por alguns lugares estratégicos. Acabam servindo de amortecedor quando algum impacto acontece”. Viver e aprender.
Festin de Borgogne
A Enocultura lança um novo braço de promoção de eventos e o primeiro deles vai ser realizado no Esther Rooftop no dia 23/11. São oito importadoras confirmadas (World Wine, Premium, Anima Vinum, entre outras) para uma festa em celebração da região mais cara (em todos os sentidos) da França. Informações aqui.
Borbulhas mil
Os grandes espumantes do mundo são o tema da última masterclass que Bianca Veratti realiza em seu atelier do Vitis Lab. No dia 11/12, ela fala sobre as borbulhas francesas, italianas, espanholas, inglesas e brasileiras, com direito a degustação de um rótulo por país. São dez vagas e as infos estão aqui.
Tomatão
Você já deve ter sido impactado pelo tomate beefsteak. Pelo visual, é como se ele fosse filho do tomate normal com uma abóbora. Mas no sabor ele é algo ainda mais sobrenatural. A Gama conta a história.
SOS criança que não come nada
Esses dias a Rita Lobo respondeu ao clamor de pais cujos filhos não comem nada. Ela fala sobre como ampliar o vocabulário das crianças pode ajudar a despertar o paladar delas também. E conta sobre uma degustação de dez frutas que promoveu na escola dos filhos. Vale a pena assistir ao vídeo, é curtinho. E fica também a sugestão do livro “Will Write for Food”.
Já foi no Cascasse il Mondo?
Perdizes não é o primeiro lugar que me vem à cabeça quando penso em tomar um drink. Mas outro dia pratiquei o inusitado e fiz um mini pub crawl pelo bairro, que me levou ao Cascasse Il Mondo. Não me senti em Perdizes. Nem em São Paulo. Era como se eu estivesse em outro país, na verdade. Não conhecia ninguém no bar. Mas me apresentei ao chef de bar Fernando Dlouhy, que contou um pouco a ideia de fazer coquetelaria autoral e de ter um cardápio com os drinks categorizados por estilo de sabor, o que facilita bastante as coisas. Começa pelos refrescantes, passa para os aveludados, depois para os estruturados e por fim para os potentes e complexos. Fiquei impressionada com as combinações e o acabamento e fui mais que feliz com o meu Irish Port Manhattan, que era o que a temperatura da noite pedia (taí uma harmonização que tem que ser levada em conta sempre), além do meu espírito. Fiquei com vontade de voltar em diferentes estações do ano — e com diferentes humores — para provar outras seções da carta.
Só mais um golinho
Como eu já havia dito anteriormente, a taça perfeita vai quebrar. E o David Shrigley concorda.
Que beleza ser cobaia numa dessas! E provas às cegas sempre rendem boas surpresas.