Não é você, sou eu
Ou talvez seja o calendário biodinâomico: quando você deixa de amar um vinho ou quando você se apaixonada por um ex-rejeitado
Já deve ter te acontecido, já aconteceu comigo. Você tem um desses encontros de alma e se apaixona. Mas é rápido, o que é bom dura pouco, pisca e ele passa. Ficam as melhores lembranças e você torce para que seus caminhos se cruzem novamente. O tempo vai correndo e você vive outras coisas, tem outros bons encontros. E aí, finalmente, o destino une os seus caminhos de novo e, dessa segunda vez é... decepção pura.
Comigo rolou mais de uma vez, mas mais recentemente e de maneira marcante no último fim de semana. Voltei a abrir uma garrafa que há três anos tinha virado a minha cabeça. Cheguei a escrever que com aquele produtor "não tinha erro". Bem, parece que quem errou fui eu: para mim, aquele vinho foi o mais puro suco da decepção. Comprado num ato de indulgência para aliviar momentos difíceis, me revelou notas precisas de suco gástrico.
Sorvi os goles com dificuldade e lentidão enquanto tentava me consolar, repetindo que aquela acidez incrivelmente desequilibrada poderia ser fruto de uma safra difícil. Sim, porque com produtor de baixa intervenção eu quero crer que não foi nada adicionado ali. Mas, no final, de que isso importa? O vinho tava sofrido e me doeram os R$ 120 que gastei na garrafa. Poderiam ter virado tantas outras coisas...
O que se faz quando isso acontece? Lamentar e talvez jamais provar novamente aquele vinho. Se o problema for a safra, vai ser triste mesmo, porque você não vai querer arriscar mais dinheiro em busca daquele encantamento da estreia.
No vinho, como no amor, o fim de um relacionamento pode acontecer de várias maneiras. A começar pelo "não é você, sou eu", quando é o seu paladar que evolui e aquele rótulo ou determinado estilo de vinho param de fazer sentido para você. Eu tenho a minha cota de Malbecs baratíssimos e de Carmenères que hoje nem sob tortura me descem.
Tem também o cara certo na hora errada, quando você abre uma garrafa interessantíssima na ocasião errada, com a pessoa errada, com a comida errada. Quem nunca? Tenho minha clássica história de Barolo com parmesão e nada mais (veja abaixo), foi minha primeira vez com esse clássico do norte da Itália que eu não consegui entender e só achei travoso (e, por que não, trevoso). Já desperdicei um belo laranja austríaco, que pedia um prato de legumes e especiarias com diferentes texturas a la Ottolenghi, com queijinhos. Já abri garrafa boa com quem não ligou e bebeu como se fosse água gelada em dia escaldante. Não sei o que é mais triste, na verdade; só sei que são janelas de felicidade perdidas.
E tem ainda aquele desencantamento que acontece sem motivo, "não é você, nem eu; não sei o que é, mas não me desceu". Pode ser o dia, o calendário biodinâmico, o humor, a alma, vai saber.
Agora, claro, há o outro lado, quando você volta a um rejeitado do passado e se surpreende positivamente, o ressignifica (ai!) e se apaixona. É como aquele seu amigo que esteve a vida inteira do seu lado, você o via apenas como um amigo e, de repente, ele é o cara da sua vida. É com essa esperança que eu digo: não desista de amar. Claro, ninguém vai sair atirando dinheiro por aí como a Jojo Toddyinho naquela figurinha de WhatsApp. Mas, se tiver a chance de provar, por que não? Na pior das hipóteses, você pode cuspir (no vinho, isso não é falta de educação mas prática profissional) e se livrar discretamente do que tem na taça sem que ninguém esteja olhando.
Adoraria terminar esse texto com um belo conselho de consultório sentimental. Mas infelizmente o que eu posso dizer é que, assim como na natureza, acredito que o nosso paladar está em constante transformação e que realmente é difícil dizer que o que faz os olhos brilharem hoje vai seguir funcionando por muito tempo. O que eu posso sugerir é que não se perca o espírito aventureiro e a coragem, porque, assim como as decepções são muitas vezes inevitáveis, mistérios e boas surpresas sempre hão de pintar por aí.
Para ouvir
Neste episódio de Que Vinho foi Esse?, eu conto a triste história de quando provei um Barolo pela primeira vez e não entendi nada. Se você nunca provou este tinto feito com a uva Nebbiolo, aconselho que adquira uma garrafa (talvez você tenha que juntar um dinheirinho antes), providencie um belo ossobuco e se prepare para uma viagem mágica.
Garrafa da semana
Nem tudo foi tragédia no meu fim de semana e, na noite de sábado, eu abri um vinho do produtor português Anselmo Mendes Muros Antigos Escolha. Trata-se de um Vinho Verde feito com 40% Loureiro, 40% Avesso, 20% Alvarinho, que acompanhou um ceviche simples com peixe branco, batata doce e milho crocante, além dos clássicos coentro, limão, cebola, sal e pimenta. Não é que ficou bom; ele praticamente salvou meu fim de semana e eu voltei so St. Marché, que o vendia a R$ 89 (preço original R$ 128,90) no fim de semana. As notas eram de maçã verde e um toque de querosene. Na boca, muito cítrico mas sem tantas arestas. Foi uma harmonização daquelas, especialmente quando entrou em contato com uma pimenta cumari do pará que deixou o vinho ainda mais frutado. A pena é que no dia seguinte, minha segunda garrafa, perdeu um tanto do charme pela temperatura (recorde de 38 graus em São Paulo) e sem a cumari. Fica pra uma próxima.
A política do vinho
Não pra ignorar o contexto maior do vinho, se provarmos levando em conta apenasa estética, vamos esvaziar a experiência, “chegou o momento de uma repolitização gloriosa e intransigente do vinho”. É o que diz John MacCarrol em texto da Punch sobre a importância da política na hora de escolher que garrafa abrir. Ele fala sobre o governo Pinochet no momento do desenvolvimento da indústria do vinho chileno, da alta pontuação alcançada pelos vinho da família de Donald Trump e até dos efeitos do aquecimento global. Pra quem lê, é fácil pensar também no que já enfrentamos por aqui.
Bares mentais
O poeta Fabrício Corsaletti já escreveu maravilhas sobre o mundo da comida e da bebida (como essa série de textos sobre o bairro da Liberdade, para a Gama). Mais recentemente, ele passou a pintar e tem uma série incrível chamada Bares Mentais. Desde que li esse título tenho desejado conhecer um. Ou talvez eu esteja sempre neles, dentro da minha cabeça. Neste aqui, Corsaletti também serve Champagne e vinho. (A boa notícia é que alguns da série ainda estão à venda e, se você gostou, pode falar com ele no perfil do Instagram por DM.
Delivery rápido
A importadora Wines4U fez mudanças na logística e agora já dá para receber as garrafas no mesmo dia da compra em São Paulo. É preciso fazer o pedido até 14h.
Eventão
Pra quem trabalha com vinho, essa semana é quente, é a da ProWine, que vai de 3 a 5/10 no Expo Center Norte, em São Paulo. Os números são altos: 900 marcas de vinho e destilado, 450 espositores e 22 países visitantes. Entre os mais exóticos para a área estão Irlanda, Peru, Turquia e Moldávia. A organização é da Emme Brasil e Inner Group (Adega), em sociedade com a Messe Düsseldorf, da gigante alemã ProWein.
Um docinho antes de terminar
Tou de olho na confeitaria do Takko, assinada pela Kath Morais e pelo Paulo Henrique Portes, sob coordenação do Pedro Pineda. Tenho voltado sempre para comer esse bolo de creme pâtissière de caramelo, missô e amendoim, que é ao mesmo tempo leve e rico com um salgadinho insano nas bordas. Tá no cardápio de setembro, mas sugiro campanha para ficar.
Só mais um golinho
- Fica aqui o recado para mim mesma, do maravilhoso shittywinememes:
que texto delicioso (que dá uma vontade indecente de abrir um vinho 9h30 da manhã!!) 💛
Meu lugar é mais da música do que do vinho, mas se apaixonar por ex-rejeitados é das melhores coisas da vida.