Muitas pedras no meio do caminho
Uma história de amor escrita nas estrelas entre o Priorat e eu, com encontros, desencontros, um final feliz e alguns conselhos pra você
Se eu puder dar um conselho nesta vida é: leia seus emails até o fim.
Em 2019, eu estava trabalhando muito e louca por uma viagem, mas totalmente sem perspectiva de que, de fato, fosse a algum lugar. Chegou o que considerei ser um aviso de pauta, um release sobre um evento que aconteceria no Priorat, na Catalunha, Espanha, uma das regiões produtoras de vinho mais celebradas do mundo, feitos majoritariamente com Garnacha (uva pela qual me apaixonei ao longos dos anos) e Cariñena, com muita concentração e textura. Trata-se de um lugar muito, muito pequeno, seco, de encostas íngremes, terreno difícil, e história recente e bonita: embora fosse produtora de vinho para consumo próprio desde que se faz a bebida no mundo, foi redescoberta por produtores apaixonados dos anos 1990 que a colocaram no mapa da relevância da bebida.
Eu já sabia disso tudo então, apesar dos meus apenas quatro anos de habitante do mundo do vinho, porque um dos primeiros textos que publiquei no jornal O Estado de S. Paulo tinha sido uma entrevista com um dos fundadores desta Denominação de Origem Qualificada, que era também o enólogo do ano em 2015, o Álvaro Palacios. Ele faz vinhos lindíssimos, descritos como “alta costura” pela sommelière Gabi Monteleone.
O email de 2019 era assinado pela equipe de Palacios, em espanhol. Avisava sobre uma degustação importante, mas eu ia ter que deixar pra ler e entender melhor depois, afinal eu estava tão apressada, tinha que ir ao supermercado, pegar criança na escola, mandar um texto para o Estadão, escrever umas coisas para a Gama, que até então era só um projeto, enfim, não deu, não ia dar naquele momento, mas depois eu leria, óbvio.
Você leu este email depois? Nem eu. Mas eu soube, do pior jeito, que era um convite (com tudo pago) para participar de uma degustação incrível com a turma que fundou o Priorato. Obviamente, passei os quatro anos seguintes chorando — eu e qualquer um que ouvisse essa história dos meus tristes lábios.
Mas neste ano, voltei a sorrir. Em fevereiro fui convidada a ir à Espanha pela turma da Henkell-Freixenet dali a um mês. Com férias a tirar, eu poderia esticar um pouco e, quem sabe, conhecer o Priorat.
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A FESTA do ano aconteceu no sábado antes da viagem. Com uma nova onda de covid, achei prudente não ir. Domingo de manhã, acordei cedo para arrumar a mala e, depois de ficar muito tempo sentada lendo no celular no banheiro, me levantei com uma estranha dormência nas pernas. Caí pra frente com tudo, quase derrubei o box e quebrei o pé.
Se eu puder dar um conselho nesta vida é: não fique tempo demais sentado no banheiro com o celular.
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Dali a dois dias, embarcava numa cadeira de rodas e com os pés metidos em uma botinha de montanhismo que descolei com uma amiga (a dona da festa) e que manteria meu pé confortável e estável pelos próximos 20 dias. Podia andar, mas sem muito exagero ou aventura. Meu plano era passar quatro dias curtindo Barcelona e, no quinto, alugar um carro para ir a Falset, cidade onde ficam as vinícolas de Palácios e de René Barbier, outro fundador do Priorat moderno.
Acontece que Barcelona tem realmente muitos bares bons de vinho para quem curte vinhos mais mordenex e fica difícil não exagerar. Farra vai, farra vem, a imunidade baixou legal e, na véspera da viagem, meu marido ficou bem doente. Um teste de farmácia vaticinou: H1N1. Eu senti dó e desespero, mas, acima de tudo, só pensava que seria terrível perder o olfato. Passamos a usar máscara 24 horas por dia, dormimos de valete e lá fomos ao Priorato. Nem ossos quebrados, nem um vírus com potencial devastador estragaria o meu barato.
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Não tem um semáforo sequer no Priorato e, na cidade onde fiquei, Falset, há apenas 224 habitantes. Há um problema sério de seca (mas isso em quase toda a Espanha hoje) e uma briga grande porque um reservatório da região hoje atende Barcelona e não os vilarejos locais. Imagine como é manter atividade agrícola por ali…
Recebida pelo enólogo Oriol Castells, que praticamente desde que se graduou há 30 anos trabalha com Palácios, vi a olhos nus o que só tinha lido em livros e revistas (especialmente no maravilhoso “Oxford Companion to Wine” e na revista Decanter): o terreno é tão acidentado que se torna impossível o uso de qualquer máquina. Não é simples também colher manualmente, uma vez que é ladeira abaixo mesmo e não há aqueles socalcos organizados e firmes como no Douro em muitos lugaes. Para lavrar a terra, os produtores ali usam burricos que andam para lá e para cá com um arado.
O solo é coberto por pedras que se quebram, a chamada licorella, marca registrada do lugar. Tem também partes mais calcárias, outras mais arenosas e argilosas. É rico em minerais e há pedras metamórficas de 350 milhões de anos. Me contou o Oriol que aquele solo ali era o mais antigo da península. O clima é mediterrâneo e o sol é inclemente, não havia uma nuvem sequer no céu no dia em que visitei os vinhedos que ficam de frente ao Montsant. Mas Oriol me explicou também que estamos há 24 km em linha reta do mar e que há uma corrente de ar fresco e úmido que ajuda as pobres plantas a respirarem naquela terrível canícula (e olha que era março, ainda fim do inverno europeu).
A paisagem é lindíssima. Há oliveiras de 400 anos no local que hoje são mantidas como arma de contenção da erosão e que dão um tchans ainda maior no cenário de filme. Na visita, ficamos pra cima e pra baixo em uma caminhonete e também a pé, uma atividade de aventura considerando os declives. Até que contei a Oriol que estava com o pé quebrado, ele fez uma cara de pânico e disse: vamos conhecer a bodega?
A adega onde se faz o vinho é toda muito elegante, mas meio igual às vinícolas que têm mais dinheiro, limpíssima, correta, sem tanto charme. Passamos rápido, por essas dependências, não provamos vinho dos tanques nem das barricas, e fomos ao que interessa: a degustação dos rótulos em si.
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O Priorat sempre foi conhecido pelos vinhos concentrados. Hoje, no Brasil, temos muitos exemplares espanhóis de Garnacha na faixa dos R$ 100 que são leves, pouco extraídos, descomplicados, frutadíssimos, deliciosos mas simples. Esqueça isso, porque a Garnacha do Priorat é outra coisa. Com tanta exposição solar, amplitude térmica (sim, os dias são quentes, mas de noite é bem fresco), e pela especificidade do solo, a Garnacha de lá parece ter um título de doutorado, enquanto a que bebemos mais corriqueiramente acabou de passar no vestibular. É uma Garnacha maiúscula, capaz de fazer grandes vinhos, e não um suquinho que você toma geladinho numa noite de verão.
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Os vinhos de Alvaro Palácios são caros, mas, se eu puder dar um conselho nesta vida é: vale juntar dinheiro para prová-los uma vez na vida ao menos. Les Terraces 2021 é um corte de 70% de Garnacha e 30% de Carrignan. Esperava bastante textura e tanino pelo que sempre li, ouvi falar, e agora presenciei, mas senti uma elegância borgonhesa inesperada. Me perguntei (e perguntei a Oriol) se aquilo ali não era a mudança de um perfil clássico pelo gosto do mercado, afinal de contas o que se quer hoje em dia é mais frescor, pelo menos entre os consumidores mais antenados. Ele falou da amplitude térmica e meio que me deixou no ar.
O Finca Dofí 2021, com 88% de Garnacha, 9% de Cariñena e 2% de Picpoul era mais estruturado e largo, mais musculoso e potente, e trazia muita fruta fresca. Imagino que é um vinho que evolui muito e que vai demorar para chegar a seu auge, tendo talvez muitos auges em sua vida.
O mais absurdo (e mais caro) é o La Baixada 2021, que tem um aroma meio mágico e muito mais intenso. Tem 94% de Garnacha e 6% de Cariñena e só são feitas 3 mil garrafas. A evolução na taça em minutos foi uma coisa muito impressionante; mostrou violeta, casca de laranja, um fundo mineral misterioso e, se eu ficasse mais tempo com ele, tenho certeza de que apareceria muito mais coisa.
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Sempre me pergunto o que faz um vinho custar R$ 1,5 mil e não R$ 500. Indo ao Priorat é fácil se encantar pela história do lugar, a dureza das condições que ela impõe ao homem e às plantas a produzirem ali, e o pazer que a gente encontra na taça. No caso destes vinhos, que não são nada baratos, claro que há um jogo de mercado, a marca que a região alcançou, mas o fato de ser uma área pequena e tão complexa explica um pouco mais os valores altos cobrados por cada garrafa. É meio a lógica da zona Sul do Rio, de Manhattan, em Nova York, não tem para onde expandir, não tem pra onde crescer, é o que é, então vamos cobrar caro a quem pode pagar.
Seu eu puder dar um conselho nesta vida é: beba menos para beber melhor. Vale, realmente, economizar em volume e ser mais certeiro nas escolhas. Se não na escala de centenas do Palácios, em outras menores já vai fazer diferença.
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No segundo dia de Priorat fui ao Clos Mogador, de René Barbier, recebida pelo filho do fundador, René Barbier Júnior, personagem fantástico e talentosíssimo. Ele, sim, me iluminou um pouco mais sobre a sutil mudança de direção pela qual os vinhos da região passam desde que foram lançados na Era Parker e atendiam ao clamor do mercado por vinhos de muita potência, muito distante dessa guinada de frescor e elegância que vemos agora. O que ele disse foi que o seu próprio paladar mudou. Isso depois de uma bela crise existencial, quando passou a não gostar dos vinhos de que fazia. Eu já escrevi sobre ele na Gama e sugiro a leitura desta coluna: Um camponês, um hippie, um gênio.
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Tanto Clos Mogador quanto Alvaro Palácios são vendidos no Brasil pela Mistral, importadora a quem agradeço por ter intermediado as visitas.
Garrafa da Semana
Meio que sem querer (querendo) acabei promovendo uma oficina de harmonização no Dia dos Pais na minha casa. O menu foi feijoada, e provamos com um tinto, um rosé e um espumante. Quem brilhou mesmo foi o Casa Valduga Sur Lie, o mais barato dos três, um espumante que não passa por dégorgement (ou seja, guarda as lias ainda na garrafa) e é super-supercremoso. É fino, elegante, crocante e delicioso e, com a feijoada, fez com que a experiência ficasse mais leve e longa. Tá facinho no meu top 10 espumantes nacionais. Comprei a R$ 99 no supermercado Oba.
Clube de vinho para quem gosta de França
A importadora Cellar, que tem um catálogo de coisas finas feitas na França, lança um clube de vinhos. Está longe de ser uma pechincha, mas parece oferecer só coisa boa. Dá direito a algumas degustações guiadas por especialistas e outras facilidades. Mais infos aqui.
Xixi de gato
O Instagram tem oferecido boas informações sobre o mundo do vinho. Destaco, dessa semana, esse post do André Logaldi, um connoisseur aplicado, sobre este aroma tão peculiar e ao mesmo tempo clássico.
Vinho jurássico
Este outro da importadora Delacroix com um glossário para entender mais o Jura, região minúscula da França que arregimenta fãs apaixonados e hipsters.
Kit borbulha
Pra quem curte pét-nat, a Vivente tem lançado novos kits. Vale dar uma olhada e até comprar com amigos.
Já foi no Jabalí?
Recém aberto na Santa Cecília, em São Paulo, o Jabalí é um lugar perfeito pra uma turma grande. Fui no último fim de semana para o aniversário de uma amiga e a surpresa boa foi que toparam reservar uma mesa grande na sexta à noite e ainda usaram comandas individuais. Só aí já ganharam pontos. Mas, para além disso, tinham bons drinques autorais feitos com ingredientes da América Latina (provei o Muiraquitã com pisco, licor de tamarindo, cupuaçu, maracujá e bitter), drinques clássicos com um toque da casa (o Blody Mary trazia praticamente uma salada no copo, com um delicioso picles de maxixe entre outras hortaliças), cervejas da Trilha (vieram quentes e com discurso de que era a temperatura sugerida pelo chefe de bar, mas logo veio um baldinho de gelo), e comidinhas de inspiração sul-americana como ceviche, bochecha de porco com mandioquinha cremosa, e bolinhos de javali, além da couve-flor (sempre ela) empanada com molho agridoce. Tem um salão simpático com um bar bem bonito e um quintalzinho que, aposto, vai ser um must no verão.
Só um golinho
- Gostei dessa salada da Renata Vanzetto e acho que ela pode ir bem com um tinto bem leve, como este clarete de Pinot Cherry Bomb da Garbo.
- Aqui vai uma receita de água de jamaica, já provou? Sem álcool e com muito sabor.
- Já ouviu falar em rotovap? Parece saído do laboratório de química, mas é talvez a peça mais quente da coquetelaria hoje.
Nossa, quanta coisa boa nessa edição!