Manja tudo de vinho francês, é?
Assim como na maternidade, todos os clichês são verdadeiros quando se trata da bebida que vem da França: quanto mais aprendemos, menos sabemos
Foi no meio da pandemia, entre o lançamento de uma revista, a subsistência de uma família com uma criança de 2 anos e outra de 5, e o confinamento no centro de São Paulo que eu embarquei em um projeto pessoal muito específico: uma aula de francês com vocabulário voltado para o mundo do vinho. Sim, existe de tudo nessa vida. Online, como era o novo normal daquela época, eu me punha na frente do computador toda segunda-feira das 8h30 às 10h30 e me teletransportava para uma atividade que era só minha.
Minha professora, Analu Torres, uma gênia do ensino de língua e uma sommelière com um superpoder incrível, o de unir vocábulos precisos a notas misteriosas e logo transformá-las em universais, havia preparado esse curso alguns anos antes. Alguns conhecidos tinham estudado com ela, que já estava no meu radar. Ela seria, quem sabe, a possibilidade de salvação de um fracasso consolidado nos meus 20 anos, quando os loucos fechamentos do jornal em papel não permitiam que eu estivesse no sábado às 9h na Aliança Francesa. Imagine se autointitular jornalista especializada em vinhos e não ser capaz de dizer um “bonsoir” sem gaguejar?
Comecei animada. Era uma turma enorme, todos quadradinhos em um zoom. Analu, além de carismática, manja tudo de Borgonha e passou a nos transmitir seus conhecimentos às segundas, além de realizar belas degustações a cada novo módulo, desta vez, à noite. Recebíamos garrafinhas com líquido precioso e, também pelo zoom, contávamos o que encontrávamos nas taças de casa. De cara, achei que, com esse treino tão bom, sairia dali uma especialista não só em francês, mas em França também.
CORTA.
Três anos depois, cá estou eu, ainda uma aluna (feliz) da Analu. Os muitos quadradinhos agora são três, bravos resistentes das manhãs de segunda, já com piadas internas e intimidades legítimas de amigos (uma fofoquinha aqui, uns emojis e figurinhas acolá), ainda que não tenhamos nos visto fora da tela. O francês até que vai bem. Falar ainda faz tremer, mas consigo cantar, arriscaria um bom karaokê e solto o gogó ouvindo Clara Luciani. Meus ouvidos estão melhores ainda, quase fluentes, e já fiz bonito compreendendo discursos de produtores e até uma negociação na ProWein com um produtor da Borgonha. Mas e ela? Como vão esses crus aí?
Afemaria, quanto mais estudo, mais sei que nada sei. Sim, atesto, assim como na maternidade, que os clichês do vinho são verdadeiros. Primeiro porque a especificidade ali, na França, não tem fim. Segundo, que é AOC (appellation d'origine contrôlée, dominação de origem controlada em bom português) que não acaba mais. Pra piorar, o fato dos franceses terem uma marca-país tão forte faz com se esforcem pouco para se vender internacionalmente (pelo menos por essas bandas).
Percebi que é mais difícil do que o esperado, mas não me deixei abater. Melhoro a cada rodada minha capacidade de degustação com os ensinamentos de Analu e, a cada nova oportunidade de descobrir mais sobre os vinhos franceses, corro para fontes de pesquisa para me aprofundar um pouco. Nesta edição da newsletter, deixo algumas das experiências e referências que estão me ajudando a entender um pouco mais sobre a França. Peço perdão se aqui a coisa está mais aspiracional que real, mas prometo alguma dica amiga do bolso por aqui.
Nem só de borbulha vive Champagne
Você sabia disso? Pois eu não sabia até recentemente. Até ser convidada para celebrar o aniversário do excelente Cais, restaurante especializado na comida que vem do mar e localizado na Vila Madalena, em São Paulo, com banquete harmonizado com os rótulos do produtor de Champagne Olivier Horiot, trazidos ao Brasil pela Uva Vinhos. Os Champagne de Horiot são de cair o queixo e eu já falo deles. Mas o que vale contar foi que provei um branco inesquecível naquele dia, cuja AOC, na verdade, é Côteaux Champenois, que produz brancos ácidos e leves, e em anos mais quentes, tintos que mais parecem clarete, me disse a Jancis.
Horiot tem sua propriedade em Les Riceys, uma aldeia em Côte des Bar, em Champagne, que tem ainda uma terceira AOC, a Rosé des Riceys. Olivier é a terceira geração a trabalhar os vinhedos e, desde 1999, ele mesmo vinifica seus Champagne de forma independente, fazendo hoje um dos maiores objetos de desejo do mundo das borbulhas, o Champagne de pequeno produtor. Pra completar o chiqué, os vinhos são biodinâmicos e produzidos em grande parte com Pinot Noir, mas ele usa as uvas históricas da região: além das conhecidas Chardonnay, Pinot Meunier, Pinot Blanc e Pinot Gris, ele usa Arbanne e Petit Meslier. O cara é tão louco que ele faz um Champagne usando todas essas uvas e inspirado no sistema de Solera do Jerez (e esse é seu nome, Solera Brut Nature); e outro, o Sève Blanc de Noirs, que fica por SEIS ANOS com as leveduras, chegando a um resultado gordão, volumoso, mas (não sei como é possível) ainda com muita salinidade e acidez cortante. Mas, espera, que o assunto aqui é o Côteaux:
O branco é feito com Chardonnay e Pinot Blanc e só são três barricas dele por ver e acabou. O mais impressionante é como ele é pesado mas tem uma acidez tão grudenta que fica no dente por um bom tempo. Já o tinto, achei austero, ao chegar. Chic, mas zero generoso, não me entregou nada de mão beijada. No final, se abriu e mostrou mais camadas, notas terrosas, e textura.
O mais louco é que esse tinto foi servido com um mexilhão. Ou melhor: um mexilhão recheado com arroz e aioli, e com uma lambreta, com creme de mexilhão e caldo de frango. Vale dizer que o menu foi todo assim, surpreendente e generoso. A começar pelos blinis com ovas de truta, passando pelas ostras frescas (essas servidas com o côteaux branco), um trio de crudos, um trio de camarões sobrenaturais e finalizando com um pargo, meu peixe favorito, na grelha, acompanhado justamente da Solera. Se isso não foi uma aula, nem sei.
Pra ler
Tenho namorado, mas ainda não comprei, “The New French Wine”, do norte-americano Jon Bonné, que é autor também do ótimo “As Novas Regras do Vinho”, da Companhia de Mesa. Eric Asimov, do NYT, foi só elogios. Na internet, o site Wine Fun traz muita, mas muita informação sobre França bem escrita e aprofundada.
Pra comprar
Algumas importadoras são boas fontes de rótulos franceses, além de estarem sempre no meu horizonte com objetos de desejo. Belle Cave tem vinhos finos e elegantes, delícias que vêm da Alsácia, do Jura, da Borgonha. Wines4U traz coisas mais ousadas e jovens. De La Croix tem coisa moderna, bonita, pra impressionar a um preço ok. Uva Vinhos tem coisas caríssimas e divinas, mas já começa a trazer coisas para mortais como eu. Chez France tem um portfólio amplo, com muita opção, preços interessantes. Cave Lémann tem coisa fina. E as clássicas e gigantes Mistral e World Wine tem os nomes de peso das regiões mais tradicionais.
Vinho pagável da semana
Antes que você queira me matar com dicas que não são as mais baratas do mundo, eu quero espalhar aqui a palavra do Côteaux Bourguignons, jovem apelação surgida na década passada. É borgonha feito com Gamay, é leve, é pro calor, é pra esse fim de ano com gostinho de fim de mundo e temperatura de desastre climático. Toma mais gelado, toma com comida, como você quiser, pra celebrar que ainda não derretemos. O rótulo que eu provei e adorei (e meu bolso não reclamou tanto assim) é o A. De Coligny Côteaux Bourguignons.
Um beijo e um queijo (e uma dica pra quem for a Paris)
Já no Jura, o lance é a oxidação. Mas, nossa, o que dizer das castas autóctones. Mas os vinhos de lá são caros e raros até pra quem mora na França. E o mais louco: vacas e produtores de vinho disputam cada milímetro deste pequeno departamento francês tão próximo à Suíça, porque é ali também que se faz o queijo Comté, par perfeito dos brancos oxidativos da região. (Quem me contou essa história foi a produtora do Domaine du Rolet, vendido no Brasil pela Belle Cave, que faz um Trousseau delicioso. Um tinto leve, que tem nota de cereja, tem especiaria, mas também cogumelo e até carne.)
No último fim de semana, amigos generosos trouxeram bravamente da França um pedação deste belo exemplar de queijo e um Chardonnay Arbois Pupillin Les Vianderies, do Domaine de La Renardière, que fez uma harmonização dessas de manual, pra gente entender o que é casamento regional, porque experiências viram tradição: o primeiro cara que provou aquele tipo de vinho com aquele tipo de queijo deve ter surtado, e mostrou pra todo mundo até que virasse um costume. Além de ter chegado ao tal terceiro sabor, me perdoe a viagem, eu cheguei a uma cor: eu achei que foi uma harmonização dourada. O vinho era um Chardonnay como eu nunca provei, não sei se era a nota oxidada, mas tinha uma ponta cítrica com nozes e amêndoas e uma cremosidade louca. Era mineral também, era muita coisa, puxa vida!
E sabe o mais legal? Compraram da loja da brasileira Marina Giuberti, a Divvino, que é uma loucura, disseram. Se for a Paris, vale a visita (ou a compra por WhatsApp).
Só mais um golinho
- Socorro, que essa edição ficou longa demais.
- E eu ainda não consegui aprender todos os crus do Beaujolais.
Essa harmonização é muito dourada mesmo!