Gaja: carisma, estilo e manga
Um dos maiores produtores de vinho da Itália mostra como é possível ter uma assinatura marcante independente das uvas fermentadas ou das regiões onde elas crescem
Não sei se nos apaixonamos por alguns vinhos porque são bons ou porque suas histórias são fantásticas e seus criadores detentores das preocupações certas, de uma filosofia que admiramos ou, simplesmente, de muito carisma. Fiquei com essa dúvida em loop na cabeça depois de um almoço, nesta semana, com Angelo Gaja, um dos grandes nomes do mundo do vinho desde o século 20, mas totalmente sintonizado ao que importa no século 21.


Ouço esse sonoro nome, Angelo Gaja (Gaia), desde que peguei emprestado o livro “A Arte de Fazer um Grande Vinho”, de Edward Steinberg, há oito anos. Logo no começo do livro, o autor descreve como o italiano foi ovacionado pela crítica especializada na Broadway, em 1991, durante a apresentação e degustação de seus vinhos na New York Wine Experience, onde também se apresentaram produtores como Romanée Conti, Château Latour e Lafite. O autor frisa que, menos de duas décadas antes, ninguém nos EUA conhecia aquele nome e nem dava bola pros vinhos italianos.
Angelo Gaja começou a trabalhar cedo na vinícola fundada quatro gerações atrás em 1859, no Piemonte. Observador atento da natureza, ele encontrou o estilo que queria seguir e ousou em escolher uvas que até então pareciam alienígenas naquele terroir (ele conta do processo de convencimento para plantar Cabernet Sauvignon no Piemonte e de como o pai desprezava vinhos brancos). Acabou produzindo vinhos extraordinários e com uma enorme capacidade de sobreviver ao tempo, e passou a ser conhecido como sinônimo de excelência.
Nesta semana, a ideia era para provar alguns dos rótulos que são vendidos no Brasil (importados pela Mistral) e saber mais sobre a vinícola, aproveitando a visita do filho, Giovanni Gaja. O pai nem viria ao Brasil, mas mudou de ideia. Para me preparar, ouvi o episódio do maravilhoso podcast I’ll Drink to That, em que ele conta algumas das histórias que eu também conto aqui.
Ao chegar ao restaurante, provei o que perseguia a tempos: os vinhos do Etna. A começar pelo Idda Bianco 2021, da variedade autóctone Carricante vinda de um vinhedo a sudoeste do vulcão. Idda significa ela no dialeto local e se refere à montanha, ou seja, o Etna. O vinho era o oposto dos brancos que eu imaginava (e dos poucos que já tinha provado) da Sicilia, encorpados, alcoólicos, até meio escuros. Já tinha ouvido (e lido aqui) sobre o Etna e foi até mais do que eu esperava: era fino, fresco, mineral, o puro zest de limão… siciliano. A região é conhecida pela altitude, os vinhedos estão entre 600 e 3,3 mil metros de altura, e tem ainda a proximidade do mar, o que pode explicar tanta acidez. Mas tem a mão do produtor também, claro, e o que ele quer para seus vinhos. Vamos chegar a isso.
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Giovanni chegou antes, cumprimentou a todos, se preparava para iniciar a apresentação. Até que aparece o pai, de preto, com óculos muito coloridos — e um sorriso idem. Ele parecia envolto em uma nuvem de carisma capaz de ofuscar qualquer outro ser humano a seu redor. Foi presenteado com mangas, fruta pela qual nutre paixão, e ficou feliz como uma criança que acaba de ganhar um brinquedo. Falou que resolveu acompanhar o filho até o Brasil por prazer, afinal não pisava aqui desde antes da pandemia e gostaria de rever os amigos. Para mim, pareceu um pouco papo furado. Ficou claro que, depois de seis décadas nesse business, e após ter sido o responsável pela internacionalizacão dos negócios da família, ele ainda não consegue largar o osso; pode ser que esteja passando o bastão para os filhos, mas nem tanto.
Tudo vem sendo feito há décadas do jeito dele, um jeito muito particular. Por exemplo, ainda que Gaja seja um nome de peso, se você procurar na internet pelo seu site oficial vai encontrar, na verdade, um cartão de visitas apenas: nome, endereço, telefone. Também não há nada no Instagram, no Facebook, no TikTok. Se quiser informações fonte zero, vai ter que assinar uma newsletter que tem periodicidade trimestral. A divulgação do trabalho é feita nos diferentes mercados, presencialmente, e apenas por membros da família, formada por cinco: Gaja, a mulher, as duas filhas (a que se chama Gaia, dizem, é Angelo de saias) e agora Giovanni.


Talvez esse estilo tenha vindo de um conselho da avó, Clotilde Rey, uma das pessoas mais rígidas que conheceu mas sua grande professora na vida. Aos 8 anos, ela lhe disse: “Angelo, você tem que ser um artesão. E, para ser um artesão, é preciso 1. fazer. 2. saber fazer. 3. saber fazer fazer e 4. fazer saber”. Ele explicou que além de fazer e fazer bem, era preciso conseguir passar os conhecimentos adiante (número 3) e divulgar o próprio trabalho. “O marketing não é uma coisa indigna, vulgar”, afirmou, ao lembrar da história.
Nesses 62 anos em que está à frente do negócio da família, Angelo Gaja expandiu a produção para outras regiões da Itália: além da Sicilia, produz também em Montalcino, onde cultiva uvas internacionais e faz loucuras com a Cabernet Franc e a Sauvignon, como provei ao degustar o Magari 2019. Mas ali, além do Barbaresco que é sua assinatura mais famosa, foi o Brunello di Montalcino Sugarille 2004 que me fez apertar o pé no freio, ou eu enxugaria a taça de uma vez. (Com quase 20 anos de evolução, ele me pedia para ser um pouco mais reflexiva.) Encontrei um vinho tão educativo, ideal para quem quer organizar o repertório: couro, cedro e… maquiagem. A cada vez que eu aproximava a taça, novas pistas do que ele iria oferecer, mas era preciso ter atenção para captar, nada foi me dado de graça (quer dizer, o líquido, graças a Deus, não foi cobrado).
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Espertamente, sentei ao lado de Gaja e percebi que nem comia. Comentei sua aparente falta de apetite, ele me disse que, nessa profissão, se come demais. Falou que ficou muito interessado em como o mapa de vinhos do Brasil está crescendo e no sistema de poda invertida brasileira. Achou isso de uma engenhosidade fantástica, ainda que não tivesse provado os vinhos. Minha colega Suzana Barelli deu um jeito de descolar alguns de produtores que considera representativos (Guaspari, Casa Tes e Sacramento) e ele avaliou que estão num bom caminho (a reação dele está aqui).
Um dos assuntos nos quais ele mais se debruça e de forma pioneira é o aquecimento global. É atento às mudanças e a ida ao Etna tem a ver com isso, mais altitude em busca de mais frescor. Os vinhos brancos, segundo ele, serão mais fáceis de se produzir que os tintos, pois as uvas de pele escura são mais atingidas pelo calor. Por isso mesmo, tem experimentado cada vez mais brancos, fez aqui uma masterclass desses vinhos. E foi aí que perguntei: e como é que se controla então os níveis de álcool nas bebidas se a temperatura só sobe? Tem um lado bom, é um grande momento para a Nebbiolo, que nunca amadureceu tão bem (atenção, amantes de Barolo!). Mas, claro, se passar do ponto, já era. A sua resposta foi uma gargalhada e a devolução da pergunta. “É o que estamos tentando descobrir, manejando muito os vinhedos.” E indo, quem sabe, à Alemanha produzir Pinot Noir, em uma das pistas que nos deu sobre seus próximos passos.
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O que eu percebi ao provar os seis vinhos produzidos por Gaja e vendidos pela Mistral é que há, na obra desse produtor italiano, uma espécie de linha editoral: ali havia três terroirs diferentes, Piemonte, Sicilia e Toscana; muitas uvas autóctones (Carricante, Nerello Mascalesse e Cappuccio, Sangiovese e Nebbiolo) e até internacionais (Cabernet Franc, Sauvignon, e Petit Verdot); mas de alguma maneira, tudo fazia parte da mesma família, tudo conversava, tudo trazia a mesma elegância fina, notas aromáticas que se organizavam em uma escala, como uma assinatura sensorial. Isso, além do carisma, da filosofia de “ouvir e assistir à natureza”, das piadas, do senso estético que o fez escolher aqueles óculos, da paixão pela manga, faz um bom produtor.
Só mais uns golinhos
- Quem tá em São Paulo e quer comer e debater o mundo da comida tem que ficar esperto no Mesa São Paulo. Tem muitos titãs da gastronomia como Albert Adrià, Claude Troisgros e Manu Buffara, além da turma da Cia. dos Fermentados para falar um pouco das bebidas também. Ah, além de uma feirinha com comidas de super-restaurantes.
- Nesta quinta (26), vai ser lançado o novo guia vinhos Adega Portugal 2023. Vai ter uma degustação com a presença de muitos produtores e seus vinhos. Dá uma olhada aqui para ingressos e ver quem participa. Também em São Paulo.
- Fica de olho que estão aí as promoções de vinhos já no clima de black friday. A World Wine já começou.
- E, pra terminar, eita que chegou a polícia do vinho natural :p