Aproveite cada minuto das suas narinas
Onda após onda de covid-19, sabe o que cai bem? Uma máscara, cuidar do olfato e, sempre que puder, lembrar do mantra adaptado de "Procurando Nemo": Continue a cheirar, continue a cheirar
Quando eu era criança, achava curioso e incompreensível esse negócio de fazer seguro para as partes do corpo. A Liza Minelli, pelo que eu tinha ouvido, tinha segurado as pernas. O Keith Richards tinha segurado as mãos. E, pelo que os desenhos animados me ensinavam, a diferença de ter um seguro era que nada de mal aconteceria a você depois que assinasse um papel (quando algum personagem assinava o seguro de vida no ato da queda, ele não se esborrachava no chão).
Quando a covid-19 parou o mundo, além do constante medo de morrer, eu tinha medo de perder o olfato para sempre. Meu olfato não é lá grandes coisas, está bem longe das pernas da Minelli e das mãos do Richards, mas eu lutei tanto para conseguir que ele trabalhasse de forma razoável que seria um desperdício absurdo perdê-lo. A paranoia escalonou em um nível tão absurdo que eu passei seis meses sem pisar no hall de entrada do apartamento. Demorei dois anos e meio para ir ao primeiro jantar profissional, pra você ter uma ideia, até relaxar total — e pegar covid pela primeira vez, em uma festa, e NÃO perder o olfato.
Mas aí eu fiz uma viagem que considero das mais importantes para mim, neste ano, para a Pro Wein, em Dusseldorf, na Alemanha, acompanhando a importadora Belle Cave. Inexplicavelmente, no primeiro dia em que provamos exaustivos 93 vinhos, do nada, no meio da tarde, entre muitos espirros e funga-funga (e a vergonha no meio dos produtores?), perdi o olfato. Os últimos dez dessa soma acima, para mim, foram só textura e zero nota olfativa. Qual não foi meu desespero, você pode imaginar. Você que tem me acompanhado aqui já deve ter notado que carrego um otimismo que “tudo vira história”, e vira mesmo, claro. Mas como aproveitar ao máximo o que um vinho pode dar se você não tem como descortinar os mistérios de seus aromas com duas intrépidas narinas?
Tem gente que acha que as notas olfativas descritas nas fichas dos vinhos ou declaradas pelos degustadores são conversa para boi dormir. E muitas vezes podem ser mesmo. Mas eu vejo essa fase da degustação como uma boa preliminar. Se você mergulha fundo, se dedica, se concentra, pode ser a parte mais legal da brincadeira toda. Como muitas outras, eu defendo também que é uma atividade que é melhor desfrutada quando temos companhia, assim é possível debater e procurar na própria taça os achados do outro.
A covid voltou a bater na minha porta na terça-feira à noite, com um teste positivo no núcleo duro familiar. Eu estou com exames negativos, mas voltei a sentir o medo de perder meus médio-poderes de aspirante a cão farejador. Estou de máscara em casa, me retirei das minhas atividades públicas porque acho que um positivo ainda pode chegar, me resignei por perder algumas promessas de delícias em degustações nesta semana, mas acima de tudo estou aqui preocupada com uma eventual perda de 70% da graça do vinho.
Se o seu olfato está bom, afiado, cuide bem dele. Talvez uma máscara caia bem esses dias. E, quando puder tirá-la e aproximar o nariz de uma taça, como diria Dory se não fosse peixe e gostasse de vinho: continue a cheirar, continue a cheirar! Aproveite esse grande sentido tão desprezado pelas sociedades ocidentais; hoje, até as máquinas estão sendo ensinadas a sentir aromas. E, acredite, vale prestar atenção no que entra pelas narinas a todos os momentos do dia, fazer um esforço para lembrar que os cheiros estão sempre nos rodeando.
O papo de aroma, quando se mergulha fundo nesse universo, é tão legal e rico que arregimenta fãs das mais diversas crenças, até os loucos que largam tudo para treinar para aquelas impossíveis competições de sommelier. Mas é quando ele faz uma interseção bem louca com linguística que atinge seu ápice para mim. Como nomear um cheiro? É sempre possível apelar para a memória? O que é cajarana para mim é o mesmo que é para você? E, com essa última deixa, lanço um desafio: encontre as suas próprias notas descritivas (e me conta aqui depois, quem sabe, o que seria a sua cajarana). Como inspiração pra isso tudo, vai aqui a roda de aromas proposta pelo livro “Wine From Another Galaxy”, de Dan Keeling e Mark Andrew, do bar e revista Noble Rot, de Londres:
E pra quem quer um pouco de guia de estudo, uma página inteira do WineFolly aqui.
Garrafas da semana
Inspirada pelo novo “Guia dos Vinhos”, que reúne 561 rótulos de brancos, tintos, espumantes e rosés de 18 países e degustados às cegas pelos especialistas Suzana Barelli, Marcel Miwa, Beto Gerosa e Ricardo Cesar, aumentei a seção para um plural bem generoso de garrafassssssss. Reproduzo aqui algumas curiosidades e preciosidades que garimpei da minha primeira leitura, além de rótulos que provei na noite de lançamento:
Fiquei com vontade de baixar o nariz e provar o Casillero del Diablo Chardonnay 2020, que custa R$ 55 e levou 90 pontos, sendo o segundo melhor branco do ranking de até R$ 100. Tem notas de pera, caju, amêndoa e creme de confeiteiro, boa acidez que se sobrepõe à doçura final. Se tem caju, me chama.
Pra uma noite de prazer, relembrei do Ramon Bilbao Crianza 2019, de 94 pontos, que traz frutas (negras e vermelhas) e especiarias (cravo e canela) e um toque de couro, com final de flores secas e caramelo e final longo. Bastaaaaaante coisa pra caber em R$ 127, o que eu chamo de achado.
Agora, meu favorito da noite de lançamento foi o Era dos Ventos Teroldego 2020, que, segundo a descrição dos colegas, traz “fruta negra e concentrada na primeira impressão, tostados em um segundo momento”. O que mais me pegou foi a sensação de equilibrio e fineza, apesar da concentração, o que resultou em zero peso e só alegria. É mais carinho, mas vale a dica pra uma data especial, R$ 255 e 93 pontos.
Entre os rosés, já deu pra sacar que a tendência é seguir os tons mais vibrantes e esquecer aquele rosinha desmaiado (o chamado casca de cebola). Apesar do Claude Val continuar sendo o melhor custo-benefício (91 pontos e terceiro lugar por R$ 99), eu já o tomei demais e fiquei interessada mesmo foi no Château de Roquefort Corail 2021, que é mais intenso, traz fruta vermelha ácida no nariz e frescor cítrico na boca. Mas o show vale R$ 190, o que dói um pouco.
E, por fim, a pechincha do ranking de espumantes é um moscatel Ballade by Miolo, que tem 91 pontos, está no quinto lugar e custa R$ 59. Olha os highlights: nota de lichia no nariz, limpo, intenso e fresco. Quem traz pra mim agora geladinho?
Melhore o seu francês
Também na segunda, a França está no foco da Foire Aux Vins, com mais de cem rótulos e uma programação que inclui conversa e degustação de três vinhos com Caroline Teycheney, proprietária da Vignobles Jade, Saint-Émilion, Bordeaux; três vinhos com Bertrand Letartre, proprietário do Domaine de La Rouillère, Provence; e a degustação "Um Giro pela França", de quatro vinhos com Manoel Beato. A partir de R$ 190.
Pra quem ama Rioja
Na próxima segunda (25), a Sorì faz degustação vertical de 6 safras do Marqués de Murrieta Reserva (2012, 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017). Custa R$ 315 e começa às 19h30.
Só mais uns golinhos
- Dei uma pirada nesse mil folhas de maçã, que bem poderia acompanhar aquele moscatel do Guia dos Vinhos.
- Se alguém conseguir a receita do palitinho de queijo do Congresso, por favor, me repassa, tou obcecada.
- Com a imagem abaixo, do perfil do escritor Pedro Mairal, lembrei daquele meme: Que distraída, fui abrir um pdf, abri um vinho (porque achei que já era sexta).