Uma harmonização estrelada só com vinhos brasileiros
O menu de 25 anos do D.O.M., a garrafa da semana, a Nigella dos vinhos, um restaurante saudável pagável e sem noias, Paola+Fisher, umas receitas e mais
É digno de nota: ao comemorar seus 25 anos, o D.O.M., primeiro restaurante brasileiro a figurar entre os melhores do mundo, o primeiro dois estrelas de São Paulo, serve um menu nordestino com uma harmonização quase totalmente nacional. Isso aí, vinho brasileiro para brindar as bodas de prata.
Antes da pandemia, fui convidada a ir ao restaurante e fazer o menu harmonizado pela Gabriela Monteleone, que então comandava o serviço. Lembro de um casal bem playba na mesa ao lado, o cara indignado porque tinha um vinho de São Roque (um Cabernet Franc da Bella Quinta) na harmonização. Lembro do jogo de cintura da Gabi para explicar as qualidades do vinho. Você tem alguma dúvida de que o cara não gostou do vinho exatamente porque ele era de São Roque? Eu não tenho. Achei admirável a coragem dela.
Como achei admirável o trabalho do Luciano Freitas, que agora é o sommelier-chefe do D.O.M. Foi ele quem escolheu os vinhos brasileiros de pequeno produtor para acompanhar os pratos. Luciano é meu conterrâneo e, ao chegar a São Paulo vindo do Ceará, trabalhou em uma hamburgueria e, depois de uns dois anos, foi para o D.O.M. Lá ele começou como cumim, ajudante de garçom. E, como era bom de ajuda mesmo, começou a se meter na adega, dava uma força pra Gabi. Ela notou o interesse e começou a contar a ele algo sobre os vinhos dali, dar uma provinha acolá. Ao provar o primeiro Riesling, ele não teve dúvidas: é igual a querosene de lamparina. E assim, com a sua própria memória olfativa, foi construindo seu repertório.
Luciano ajudou a Gabi, que formou o Luciano e foi com orgulho de professora que ela provou os vinhos escolhidos por ele no mesmo dia em que provei e me impressionei. Até dos tintos brasileiros eu gostei. Costumo implicar, acho que tem uma nota de umidade, de pano molhado. Encontrei um pouquinho ainda no Pinot Noir Valparaiso, mas depois ele virou uma coisa dos deuses: era só uma redução momentânea, foi girar a taça e o odor se dissipou dando lugar às frutas mais vermelhas e crocantes. Cheio de acidez, ele limpou a boca da gordura do mocotó, que eu mandei ver com uma tapioca gorda.
O ponto mais alto talvez tenha sido o Chardonnay da Vinhas do Tempo, da safra de 2022, que assim como todos os outros era revestido de um rótulo comemorativo do restaurante, mas vale dizer que existe um Vinhas do Tempo Chardonnay 2022 comprável na internet sem o rótulo do D.O.M. Esse vinho tava um estouro: complexo, com nota de caju, um toque tostado, na boca era amplo, rico, mas tinha acidez que deixava salivando por horas. Foi servido com um peixe que sumiu, o vinho era o protagonista.
Outra boa surpresa ainda foi o Terranova Tropical Moscatel, um vinho de R$ 42,90, que acompanhou a sobremesa mais cabeça, que misturava bacuri e coco verde. Não que você vá reproduzir algo do gênero em casa, mas comprovou minha tese de que não tem nada mais chic do que um espumante moscatel, por mais simples que seja, com um prato de frutas frescas. E vale descolar essa experiência das refeições mais “nobres”: já pensou isso aí de lanchinho da tarde, que tudo?
O único ponto baixo foi um vinho chileno. Não que ele fosse ruim, na verdade é bem do seu bom, um Tara Syrah, feito com viticultura extrema no Atacama. Mas por que enfiar um chileno em um line-up brasileiríssimo desses? Ficou provado ali que os vinhos brasileiros podem muito bem acompanhar a alta gastronomia sem nenhum prejuízo.
Garrafa da semana
Nesta semana fui à degustação de Wines of Chile e, embora tenha ouvido sobre a incrível diversidade de produção do país, sobre o crescimento do consumo de brancos e sobre como o claret é o novo pretinho básico, dos 15 vinhos provados, dez eram tintos classicões, encorpados, cheios de fruta e madeira. Mas o vinho que abriu o painel era fresco, aromático e tinha um precinho camarada. O Montgras Quatro Branco é um corte de quatro uvas (51% Vermentino, 23% Verdejo, 17% Viognier, 9% Albariño) e uma ótima alternativa pra substituir o Sauvignon Blanc de sempre. Em vez da exuberância tropical, você vai encontrar mais elementos a desvendar, como maçã verde, ervas e flores. Mas se procurar direitinho, ainda acha mais.
Nigella dos vinhos?
Mais de dez amigos me mandaram o link da entrevista da escocesa Hannah Crosbie ao Punk Drink. Com um humor gen z e inteligência de internet, ela faz um mix de influência e jornalismo de vinhos. Mas é pela farta cabeleira e pelo delineador de gatinho que ela vem sendo chamada de “Nigella dos vinhos”. Depois de ler a entrevista, passei a seguir o perfil no Instagram e vi que vale mais pelos memes do que pelas informações. Fiquei mais intrigada e ouvi a entrevista abaixo pra tentar entender mais a figura. Recomendo o pod, caso você tenha lido a do Punch e tenha ficado curioso.
Já foi no Estela Passoni?
Já fazia um tempo que eu tava de olho na Estela Passoni, em Pinheiros, São Paulo, e saquei que tinha uma vibe quase de clube, não só de restaurante. Isso porque tem de aula de yoga a encontros de leitura, uma programação tão diversa (e simpática) que dá até vontade de ser vizinha. Fui convidada a conhecer e marquei um almoço com um amigo que não via há tempo. Ele tava de ressaca, e comemos um saladão thai com manga e frango (foto abaixo) e tomamos um chá mate que, eu sei, é perfeito pra aplacar esse tipo de mal. Comemos os dois a mesma coisa não porque dividimos, mas porque parecia tão delicioso que não dava pra não pedir. Havia mil outras opções na linha de PFs fartos e saudáveis sem serem fit. Aliás, no convite, fui alertada: “A gente é um restaurante de comida saudável sem nóias! Rsrsrsr Não trabalhamos com carne vermelha, nem ultraprocessados, nem fritura… e priorizamos insumos orgânicos”. Tá ótimo, né? A conta deu R$ 70 pra cada e saí mais que satisfeita.
Paolla e Fisher
Acaba de sair na Audible o “Nem Só de Pão”, podcast produzido pela Rádio Novelo com a Paola Carosella. O trabalho tem a mão da gênia Flora Thompson-DeVeaux (escrevi esse texto sobre ela quando rolou “Praia dos Ossos”) e liga as memórias da Paola às reflexões da imensa MFK Fisher. Ouvi só o sample (se alguém entender como faz pra assinar tendo uma conta da amazon, me conta?), mas já deu pra ver que a qualidade é altíssima.
Bocaditos
- Adorei esse jeito de cortar um bolo.
- Esse pudim de doce de leite da Bel Coelho deve ser a coisa mais maravilhosa do mundo.
- E algo me diz que essa quiche do Raphael Despirite ainda vai me salvar. Aliás, o perfil dele é tudo! Vale seguir.
- AMAY esse gráfico em pizza, sdds infografia. Vale usar pra incrementar seu próximo drink.
Só mais um golinho
E já que a Hannah Crosbie é meu novo objeto de estudo, fecho esta edição com esta pérola criada por ela: