Não fale mal de Malbec perto de mim
Cinco rótulos que vão fazer você esquecer de qualquer vinho mais pesadão feito com a uva que é a maior estrela do lado argentino da Cordilheira
Nesta semana, o nome de uma uva não saiu da minha caixa de entrada. Todas as agências de PR do mundo tentaram vender a mesma pauta, o dia da Malbec. Cada ano, parece que o calendário do vinho cresce com a incorporação de novas variedades que passam a celebrar uma espécie de “aniversário”. No caso da Malbec, a data surgiu em 2011 quando a Wines of Argentina e o governo argentino se uniram para valorizar um de seus principais produtos agrícolas. A escolha de 17 de abril se dá porque, neste mesmo dia no ano de 1853, o francês Michel Aimé Pouget (1821-1875) conseguiu a aprovação da Assembleia Legislativa argentina para implementar seu projeto de incorporação de novas cepas no país.
Mas como eu escrevi anos atrás no meu antigo blog no Estadão, talvez nem Pouget pudesse imaginar o golaço que estava fazendo. Foi esta uva aveludada e com notas de alcaçuz e violeta, além de belas frutas negras maduras que, nos anos 1990, colocou a Argentina no mapa internacional vitivinícola e se tornou, para sua glória e perdição, uma marca: de repente, todos queriam beber Malbec, e aí todo mundo começou a fazer Malbec, e aí Malbec virou qualquer nota. Lembrando que tudo isso aconteceu na Era Parker, quando os vinhos eram superlativos. Criou-se um Malbec bem gordão, pesado, muito alcoólico e capaz de produzir um efeito inflável dentro de quem bebia. E muita gente acha que a Malbec é isso até hoje. Por sorte, houve uma resposta a esse perfil, produtores que entenderam que era preciso pesquisar a uva para chegar à sua excelência. Hoje tem Malbec na Argentina de todo jeito, como prova o Guia Descorchados deste ano. Tem os seríssimos, de guarda, e os tipo suquinho, para tomar na piscina. Já pensou, Malbec de pileta? Pois tem.
Uma importante embaixadora da Malbec no mundo e que também investe rios de dinheiro em pesquisa é a Catena. Já ouvi entrevista em que Laura Catena, filha de Nicolás, conta como não aguentava ser ignorada em feiras internacionais e quis fazer esse jogo virar. Na pandemia, assisti a um longo zoom em que ela reuniu pesquisadores do mundo todo para falar das vinhas, da fruta e até da genética da planta da Malbec. Laura coescreveu o livro mais simpático sobre a uva, o “Malbec, Mon Amour”, que é traduzido para o português e editado aqui pela Catapulta.
Mas também é impossível falar de Malbec sem falar dos Zuccardi. Junto aos Catena, eles talvez sejam os maiores estudiosos da cepa no terroir argentino. Enquanto os Catena investigam os efeitos da altitude, os Zuccardi se concentraram no solo. Chegaram a arrancar vinhedos inteiros já plantados quando perceberam que se desenvolviam de forma irregular, perfurando as chamadas calicatas (uns buracões) para entender o que exatamente tinha ali embaixo e que efeitos isso tinha na fruta e, consequentemente, no vinho. Um estudo de gente doida, mas que teve resultados geniais. Com isso, eles alcançaram algo semelhante ao que os franceses têm, a ideia dos crus. Neste podcast há um trecho sobre eles.
São justamente Zuccardi e Catena os dois produtores a receberem as notas mais altas do guia Descorchados deste ano, com dois Malbec. Ambos tiveram 100 pontos, uma pontuação até então inédita na publicação. Os rótulos são Pedra Infinita Paraje Altamira Supercal 2021, cujas uvas crescem num solo super hiper mega maxi calcário e trazem pouca fruta e muita mineralidade com um poder de guarda de décadas; e o Adrianna Vineyard Mundus Bacillus Tarrae 2021, que está 1,4 mil metros acima do nível do mar, ao norte do Valle de Uco.
Provei o Pedra Infinita e posso dizer que realmente é uma coisa de outro planeta. Não achei na página da vinícola na Grand Cru, mas não custa dar uma ligada lá se você tiver interessado, sabendo que vai ter que desembolsar muitos zeros do seu bolso. O outro eu não provei, mas tem no site da Mistral (algumas outras safras). Segundo Patrício Tapia, autor do guia, os taninos são severos como giz e os aromas são de cerejas ácidas, com camadas de mineralidade e sal. Pela descrição já anseio fortemente pelo nosso encontro.
Mas estes são vinhos para uma vez na vida, então vamos aqui a uma seleção de cinco Malbecs para todos os dias (ou para todos os fins de semana, pra gente não abusar demais):
Zuccardi Q Malbec — Não é exatamente barato, mas esse vinho é um ótimo negócio. É feito com o cuidado dos Zuccardi, leveduras nativas, passagem por barrica, e traz notas de frutas vermelhas e flores (rosa e violeta), além de ervas. É clássico e chic, mas não é careta. E mais: ele tem vida longa, pode evoluir e mostrar muitas novidades no futuro. Provei um vinho desses de 20 anos de idade e fiquei de boca aberta.
El Burro Malbec Natural — Também feito pelos Zuccardi, em outro projeto, a viníciola Santa Julia, traz a pegada de levedura e a leveza de um suquinho gostoso para tomar mais geladinho. Funciona sozinho ou acompanhado de algo bem leve. Vai bem na piscina, no bar, enquanto se cozinha. Não vale com pratos mais pesados e carnes suculentas, ele vai sumir. Malbec pra tempo quente, mais baratex, e simples.
This is not just another lovely Malbec — Esse é um exemplar mais rústico, até assusta no começo, mas logo mostra que tem bastante violeta e alcaçuz pra nos envolver. Tem muita, mas muita textura, dá meio vontade de mastigar. Tem adstringência e acidez no ponto certo e nada de gordura. Adoro, vale demais pra comida.
La Marchigiana Malbec — Faz parte de uma nova linha dos Catena e é vinificado em ânforas de barro e fermentado com leveduras indígenas, em mais um projeto de resgate de ancestralidade do vinho. As uvas são orgânicas e biodinâmicas de Gualtallary. Pode-se esperar limpeza, uma fruta madura bem cristalina e menos corpo que o Malbec padrão (mas uns bons 14,5% de álcool).
Argento Estate Reserve Malbec — Por fim, outra dica do Descorchados. Este é um vinho de ótimo custo benefício, recebeu 92 pontos no guia, é orgânico, e embora seja um varietal (feito apenas com Malbec) é um corte de diferentes regiões, ao reunir uvas de Altamira, Agrelo e Luján de Cuyo. Tem uma pegada mais clássica, na boca traz a ameixa e a amora esperadas, mas no final tem umas especiarias meio misteriosas. Tem passagem por barrica também, então é capaz de você sentir uma coisa meio chocolate, meio baunilha.
Só mais um golinho
Depois de tanto vinho, só um café mesmo e a conta. (Também celebramos o dia mundial do café nesta semana, no domingo 14).
Adorei o This is not..., um malbec metido a tannat.