Autoestima enófila abalada
Errar no vinho que você leva à casa de um amigo é humano. Um erro pode ainda virar um acerto. Veja dicas valiosas para acertar e impressionar
Atire a primeira pedra quem nunca se sentiu mal por levar um vinho “errado” à casa de um amigo. Ou quem nunca quis morrer ao abrir uma garrafa meio nhé ao receber em casa uma turma que gosta de beber de verdade. Ou quem não tava preparado na quantidade certa e a bebida acabou antes da hora — ai, a agonia de ver as taças vazias enquanto a conversa parece que não vai ter fim.
Eu canso de ouvir amigos dizendo que não têm coragem de trazer vinho para a minha casa, quando, mal sabem eles, eu também canso de dar meus foras. Faz duas semanas, visitei a casa de campo de novos amigos, ou seja, fase em que ainda não há intimidade e queremos ser muito legais. Naquele lindo dia de sol, entre o tinto confiável e o rosé duvidoso, achei que faria mais sentido me agarrar ao segundo, torcendo para que ele fosse ao menos razoável, afinal, que calor. A garrafa era linda, os aromas deliciosos, mas na boca escorregou liso feito água, chatinho que só ele. Fiquei com aquela cara de tacho, até o dono da casa perceber que a garrafa (ainda assim, milagre dos milagres) chegava ao fim. “Acho que só tenho brancos”, ele disse. Foi na adega e trouxe um Salentein Chardonnay 2013 que ele duvidava que estivesse bom. Eu, encorajada pelo meu próprio fracasso (nada, mas nada mesmo seria pior que aquele rosé), falei: “Só abrindo, ué”.
(Falando em aberturas, abro aqui um parêntese pra dizer que, salvo raríssimas —e caríssimas— exceções, sou chata com os brancos argentinos de vinícolas conhecidas por seus Malbec. No geral, acho que eles são muito alcóolicos e têm pouca acidez, são tropicais demais, com muita madeira, verdadeiros pavês de abacaxi. Então eram dois desafios a serem vencidos: a idade, já que para brancos “normais” recomenda-se não passar dos cinco anos, e minha pouca apreciação natural pelo estilo.)
Pois abrimos, ué. O líquido já não tinha nada do clássico amarelo palha: era um douradão daqueles. Girei a taça, aproximei o nariz e senti a mais pura compota de caju. Os aromas de evolução eram notáveis, fantásticos, e batiam com a descrição de brancos borgonheses que envelhecidos podem trazer as notas dessa fruta tão desparatadamente brasileira, além de amêndoas tostadas. A experiência me fez entender o que é “vinho de meditação”, porque fiquei meio obcecada e só pensava nele, só queria falar dele. Sinceramente, devo ter sido chatíssima: a conversa ia pra outro lado e eu voltava ao vinho. Mas saquei ali que nós vivemos o equivalente a ganhar a megasena (ou ao menos a quina, vai): a garrafa podia mostrar qualquer coisa, realmente, e mostrou ouro com notas de caju. Olha essa sorte! A gente nunca sabe o que vai acontecer quando “esquece” um vinho numa adega, ainda que bem acomodado. Ele pode florescer — ou murchar. Acertar o timing, é, realmente, algo digno de nota, pódio, troféu, fortuna.
Meu novo amigo, antes constrangido, ainda duvidou do valor daquela evolução nos primeiros momentos e mandou um “ih, acho que tem um pouco de cheiro de rolha”. Mas aquilo ali era um problema clássico de autoestima enófila. Logo ele se convenceu e, além da sensação de sorte, me voltou a culpa: como é que eu tive coragem de levar um rosé daqueles?
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Como em quase todas as ocasiões que envolvem a boa mesa, a garrafa certa para levar à casa dos amigos 1. é uma questão de depende; 2. precisa de planejamento. Depende da ocasião (só um bate papo, uma refeição, algo casual, algo mais sisudo), do que os amigos gostam, e especialmente do menu. Mas, sou prova viva disso em inúmeras experiências, errar no vinho não acaba com a vida de ninguém. É na verdade engraçado ver como essa bebida mexe com a autoestima de quem a oferece: se for boa, ficamos pimpões; se for ruim, é como se um caminhão tivesse nos atropelado.
Acho que os cozinheiros conhecem bem a sensação. Nunca esqueci da dor de um amigo que deixou passar o ponto do Filé Wellington, depois de horas de esmero, fazendo a pasta de cogumelos, montando a massa folhada, etc. etc. Viajávamos juntos e eu ouvi a voz da mulher o consolando do banheiro. Um abraço pra ele e todos os outros que já sentiram essa dor, ela também é minha. Um jantar é a comida e a bebida, que são fundamentais para dar o clima da noite, mas o que fica na memória é especialmente esse clima. Se no vale do fracasso soubermos reconhecê-lo com humor, fazemos do limão um limoncello.
Garrafa(s) da semana (para não errar com os amigos)
Agora, se a ideia é não errar e ainda impressionar, aqui vão três rótulos vencedores:
Quando provei uma taça do Extinto Rosé minha cabeça virou e agora tou obcecada com a ideia de reencontrá-lo. É um chileno feito em Itata, uma das regiões mais interessantes para quem tem o paladar aventureiro. Não me entenda mal, o vinho é limpinho. É feito pela vinícola Riveras del Chillán, reponsável pelo primeiro vinho feito com uva País de que gostei. Este rosé é um corte de diferentes variedades que vêm de vinhas velhas: Corinto, Moscatel, Moscatel Rosado, Malbec e País. É hipermegamaster gastronômico e eu não teria passado nenhum vergonha se tivesse levado este para a casa dos novos amigos. Que venha o próximo convite!
Provei o D’Autrefois Chardonnay depois de um Chablis muito bom e bem mais caro e mesmo assim não senti uma queda vertiginosa, me mantive no patamar do prazer. É um vinho fresco, com certa untuosidade, corpo leve a médio, com nota de fruta branca (pera, melão), ótimo para um dia quente. Pode ir com ou sem comida, mas deve ser servido bem frio. É também um ótimo custo-benefício e vai deixar saudades quando a garrafa esvaziar.
Com o Verum Tosca D.O. La Mancha 2014, a ideia é provar um vinho que tem dez anos de evolução em garrafa e que mostra notas muito diferentes das que estamos acostumados nos vinhos do dia a dia. É um corte de Cabernet Sauvignon, Merlot e Tempranillo, com 14% de álcool, perfeito com pratos que levem cogumelos, carnes e queijos mais curados. Um vinhão que faz uma ocasião.
A náusea do vinho zero álcool
Na primeira coluna na Folha no novo Guia+Comida, descrevi o resultado da minha prova de seis vinhos desalcoolizados. Desencorajo os leitores a provarem a categoria como um todo e sugiro esperarmos a evolução do mercado para provar em, quem sabe, dois anos. Foram espumantes, brancos e rosés, todos chatos, sem textura ou graça. Já tinha falado sobre esse mercado nessa reportagem da Gama.
Carbonara da nonna ou da lata
Se tem um livro sobre cozinha causando barulho é o “As Mentiras da Nonna: Como o marketing inventou a cozinha italiana”, lançado há um mês apenas pela Todavia. Mas sinto que me atrasei, perdi esse fechamento, e tem pouco a ser dito. Gostei da introdução, achei o capítulo sobre vinho confuso, e dei risada ao ver que a Heinz, do Ketchup, lançou um carbonara enlatado. Quando integrei o Paladar, o mundo da gastronomia quase se desintegrou quando a Nigella usou creme de leite para preparar a receita. Imagine o estrago dessa latinha. Colo aqui o link da reportagem, que tinha o infame título de “O creme não compensa”. E se você sabe pouco do livro, leia a reportagem de Michele Oliveira, direto de Milão.
Comida e crianças
Quem tem filho não tão pequeno assim já deve ter entendido que não adiantar dizer “imagina, meu filho vai comer de tudo” porque não vai. Cada legume ingerido pode ser uma batalha sangrenta. Se é seu caso, a Food52 escreveu para mim e para você. Leiamos e nos abracemos. Um spoiler: melhor não ficar surtando com o micro e apostar no macro, i.e., não ligar para as restrições e não desistir de apresentar novos ingredientes.
Mas esse restaurante é bom mesmo?
Como diferenciar um restaurante badalado de um restaurante bom? Essa virou a pergunta de milhões em tempos de Instagram. A crítica da revista New Yorker Helen Rosner responde e fala de um momento ótimo, quando a casa já opera há algumas semanas e está azeitada, mas ainda conserva a energia e entusiasmo dos novatos.
Já foi no Aconchegante?
Nesta semana voltei ao Aconchegante, bar simpático na Santa Cecília, no fervo da Jesuíno Pascoal. Foi minha terceira vez ali, mas a primeira para almoçar. Dei sorte e o prato do dia era um cozido baiano, bem servido, cheio de legumes, com pirão, carne cozida e linguiça. Tomei uma cerveja sour de caju (olha o monotema) da vizinha Cervejaria Central, provei ainda os croquetes de carne, deliciosos, mais o sanduíche de cupim. Uma refeição para quatro, surpreendentemente leve (no meu caso, que foquei no cozido) e com preço amigo do bolso. Nas outras vezes que fui, mais no espírito bar, fui feliz com o Bloody Mary da casa e com o atendimento super cortês.
Vai um docinho?
A Gama deu esta semana a receita de um brigadeiro da Carole Crema que vem num copinho de chocolate. É fácil e parece deliciosa. Tem também a história do doce, que nasceu numa campanha eleitoral em São Paulo.
Só mais um golinho
A história da minha vida, ou como é difícil beber por aí.
Quem nunca errou que atire a primeira rolha! O pior é quando vc leva um vinhaço e ele está bouchoné…fuén!